UM CHIMARRÃO PARA ODIN
Pelas sombras imorredouras de Yggddrasil
Há séculos previsto, um lendário encontro senhoril
Soaram sinos, tambores, violas, gaitas e sublimes vozes
Tudo para alcançar as terras pampas e além-Brasil
Também aos povos de espírito livre e corações fortes
Homens e mulheres todos de almas nobres
Mas nada disso imperava no instante em que o portal se abriu
Apenas um ser feminino observava as incríveis paisagens nórdicas
Enchendo o peito de ar do milagre glacial dos fiordes
Apanhou um bom punhado de folhas de seu rico e trabalhado alforje
Uma bolsa com um brasão do Rio Grande do Sul de refinado porte
E em alto relevo as palavras, ser gaúcho é um estado de espírito
Ao mesmo tempo ela pensava, “é um estado de espírito nobre”
E de maneira majestosa, elegante e ar conscrito
Foi colocando as folhas moídas num recipiente de borda brilhante
Para fazer uma portentosa bebida, seu rito mais cativo
Que para ela era um mistério de um povo vivo
II
Ela tomou nas mãos o graal dos pampas antigo
Recipiente que quando no seu estado puro e pujante
Veio das entranhas das terras do sul vibrante
Como também as tais folhas de cheiro inebriante
Que de tão verdes e cultivadas no solo do Brasil gigante
Pareciam amenizar a neve, o inverno e o frio
Ali entre freixos, abetos, carvalhos e um céu anil
Numa clareira aveludada da neve que na noite anterior caiu
Ela fez um círculo de pedras e logo um fogo surgiu
Fogueira esta ardendo das madeiras caídas na floresta
Da benção desejada dos deuses, esta é a mais certa
Pretendia celebrar o Yule, fazendo uma infusão com essas folhas únicas
E ali ritualizar a arte milenar da sorte rúnica
O ser feminino como se sentada em raízes mais firmes do que as colunas do mundo
Dizia palavras como as sacerdotisas no templo profundo
De antigos dias que não mais se viam nesse vasto e interligado mundo
Mas os renascidos na chama do infinito não eram mais foragidos
O coração ancestral dos povos nativos nunca mentia
Chama viva e divina abria-se para uma nova vida e mais rica
III
Um sol do meio-dia de forma incontida se exibia
A moça era um mármore divino e tudo sentia
Emprestava uma espécie de luz a noite tardia
E uma beleza inverossímil ao dia
Bela, alta, ágil e esguia
Vestes de elfas com ataviamentos de fios de ouro que reluziam
Tinha nas mãos delicadas, agora um instrumento que o Norte nunca vira
Era longo, liso e afilado
Seria um pequeno punhal, no machado ou no martelo inspirado?
Não, não, era uma espécie de canudo metálico
Num extremo era arredondado e suavemente achatado
E no outro era como o bico de uma águia serviu
Enquanto manuseava o instrumento com cuidado
Um brilho prata entre a alva e plúmbea paisagem reluziu
O povo antigo dali nunca adivinharia seu uso imediato
Mas os gestos da moça eram todos uma forma de arte sutil
E numa minuciosa tarefa de por a erva no arredondado receptáculo,
Porongo surgido no solo fértil do Brasil
Que de tão rico e finamente trabalhado
O recipiente mais parecia ter vindo da ciência material do ardil
Mas veio mesmo foi do viço da natureza
E aprimorado pelas mãos do artesão por uma incrível destreza
IV
Ela fazia movimentos tão precisos que eram uma dança de dedos
Então direcionou seu olhar azulado para uma chaleira
Suspensa no fogo por uma haste com símbolos da realeza
Olhou para aquilo com ternura, mas sentindo sua doce aspereza
Depois de algum tempo, ela teve uma visão mística e uma digna certeza
Viu no fogo avermelhado os índios valorosos e sua tez vermelhaGuaranis, tupis, charruas e outros povos andando de novo, dignos, belos e fortes
Faces sérias e do destemor das altivas feras, almas guerreiras
Quando por lá naquelas distantes terras do Sul não havia fronteiras
Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil tinha outro nome, outra face forasteira
Chamavam-na, os povos nativos do sul, de Terra Primeira
Por lá uma floresta estupenda e de extraordinária beleza
Era a única e a legítima bandeira
Foi nesse momento que o fogo revelou uma outra peleja
Um levante de árvores, flores e feras de todo porte
Mas vindos agora do Sul e do Norte
Ela sorriu como uma luz primaveril e casta
Pelas tradições dos povos nativos serem tão vastas
E escutou em tupi-guarani estas palavras:
“Anauê Coaraci, moça de cabelos de sol e pele prata
O porongo é um recipiente abençoado da Terra, mãe nata
E o tacuapi um filho prodigo da mata
A beberagem fa do bravo um guerreiro de força inata
Então, o homem branco que veio depois com uma diferente toada
Em certa época mais passada
Pela história e por alguns contada
Em Caá, a Erva-mate, foi pelo povo branco adotada
Embora, também por um tempo amaldiçoada
Porém, como ela sempre foi de Tupã sagrada
O homem branco no fim se rendeu a tradição das matas
E ali fez também o seu forte e uma erva muito amada
O nativo reconhece essa façanha do homem branco realizada
Nada mais o afastou desse caminho, mesmo sendo uma erva amarga
Então, emprestou seus metais aos utensílios nativos que até o brilho dos rios retrata
E mesmo guerreou por ela, fez comércio e a temperou com fel
De suas ações e soluções impróprias para os povos que tem no sangue a dignidade da terra
Embora, ao mesmo tempo, clamassem e justificassem tudo pelos valores do seu sagrado céu
Nada para o homem branco parece impossível
E isso é estranho para o nativo que da selva nasça
Mas a Terra-Mãe não faz distinção de povos e das raças
Cuida de todos com a mesma tenacidade e graça
Embora os nativos são mais próximos, pois o coração da Terra é a sua casa”
V
E com o coração em silêncio, a moça viu o entardecer
E ateando mais gravetos na fogueira observou a chaleira tremer
Ela era tão negra que os olhos da noite apressou em ser
E naquela clareira dos antigos do Norte um ser espectral se fez aparecer
Veio na forma de mulher madura de alvura perfeita dizer:
“Filha da floresta, és a única evaélfica no mundo a nascer
Sou a filha do inverno, mas em nada mortal como você
Tenho importantes conselhos para aqui fazer
Posso na chaleira mexer?
A moça simplesmente sorriu e balançou a cabeça
O ser espectral sem em nada se deter
Com as duas mãos pelo meio da chaleira a levantou com a água fervendo
E um chiado lamentoso fez acontecer
Com palavras ordeiras disse quase num tom de silêncio
“É bom que o bebedor se apreste sempre ao comedimento
Para o ser mortal não virar um relapso doente
A água fervendo num corpo humano é um mal veemente
Maltrata como um ferro em brasa os órgãos por dentro
Não se esqueça disso, desse sábio argumento
Espalhe e faça crescer esse conhecimentoTeste você mesma, filha, a morna temperatura é suficiente”
Disse passando a negra chaleira como se fosse vento
E sorrindo com elegância e delicadeza
Acrescentou com naturalidade e presteza:
Talvez como uma prece de um dia já distante
“Alegra o filho, uma outra criança, o jovem e o velho parente
É um cuidado que traz o melhor para toda gente
A natureza não tem necessidade de alimentar o imprevidente
Há sabedoria em tudo, basta um olhar que se atente”
Olhou para o ser e viu um belo sorriso em seus alvos dentes
“Não vou mais me demorar, porém vou deixar aqui este pingente
Para que possas pendurar no utensílio ou recipiente dos seus ancestrais
Uma coruja de ouro com olhos de diamantes
Que tudo pode ver além dos divinos portais”
E a moça se apressou em explicar, tendo os olhos mais brilhantes
“Minha senhora, o utensílio se chama bomba e o recipiente cuia para os baguais
E quero a tudo agradecer por esse momento e suas maneiras cordiais”
Então fez uma inclinação em sinal de respeito
Colocando a mão direita sobre peito
“Você é uma filha da natureza, proeza adormecida
Mas em outra parte vibra como fenômenos naturais”
E continuou num tom mais informal
“Abençoada seja, minha querida!”
O ser então estalou os dedos de uma forma colossal
O inverno e toda capa de gelo rapidamente sumiu
P.S.: Parte da poesia, UM CHIMARRÃO PARA ODIN, do livro, O AGORA EM VERSOS.
Carlos Costa França
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