REFLEXÕES 2025: Dores, incertezas e trabalho permanente, mas “Que el mundo se arregla con rumba y amor”.
Ao fim de cada ano, costumo registrar as reflexões que o
encerramento de um ciclo naturalmente provoca. Desta vez, as possibilidades
temáticas eram muitas, e eu já havia me decidido por escrever sobre as dores,
as incertezas e o trabalho psíquico permanente que a vida exige — uma espécie
de manutenção contínua da alma.
O estoico Marco Aurélio falava da importância de tornar-se um ‘ser humano profissional’: alguém que, como um cirurgião com seus instrumentos sempre à mão, está preparado para qualquer necessidade. No caso do sujeito, esses instrumentos são os da sabedoria — sempre disponíveis para o trabalho da alma.
Com relação ao tema, minha convicção se fortaleceu quando uma paciente,
em tom de desalento, relatou: "Doutor, acho que regredi em relação à
ansiedade. Estava tão bem!"
Ela, na verdade, havia progredido muito. Mas sua fala
revelava uma verdade profunda: há batalhas interiores que não têm um fim
definitivo. São trabalhos de fundo, contínuos, que não cessam — e talvez a
grande sabedoria seja justamente estabelecer-se nessa condição, aceitar que
certas lutas são parte do caminho, e não um desvio.
O fato é que não existe cura como “apagamento”. A cura é uma transformação da posição subjetiva e continuo trabalho interno. Não sei se vocês observaram, mas o mundo é "ansiogênico", um produtor de ansiedade.
Eu estava com muitas ideias, o que ia entrar ou sair da
experiência textual, embora o caminho já havia sido aberto e lutava para restringi-lo. Então, algo
inusitado aconteceu.
O sangue “Gitano
(cigano) cultural” que corre em minhas veias acabou me apontando outra direção.
Ao sair de casa para o trabalho, sob o céu azul do Sul e ouvindo antigas
sevilhanas, já tomado por uma saudade legítima dos tempos em que dancei
flamenco.
Vasculhando alguns clássicos, foi me disponibilizado pelos
bots — uma rumba flamenca: um estilo mais leve, alegre, de espírito solar, tão
distinto do flamenco tradicional, impregnado de mistério, profundidade e dor
sublime.
É nesse território que habita o amor quase impossível —
trançado por almas que se reconhecem no silêncio e no abismo — onde o tempo e o
sangue seguem o mesmo compasso. Como um Sol progredido no mesmo grau e signo, unidos por uma Sophia mística (esse trecho é astrologia e significa, destino). E
quando o que deveria ser dito permanece interdito, não resta outra saída senão
bailar.
Comecei a ouvir tal rumba flamenca com pouca vontade, devo confessar, não a conhecia, "Que suene la vida "(Que a vida ecoe). Depois, não conseguia mais parar. Com seu refrão: "Que el mundo se arregla con rumba y amor." (claro, vou deixar o link da canção no blog)
"A cura do mundo está na rumba e no amor." A
palavra "arregla" pode ser traduzida como "conserta",
"arruma" ou "ajeita", mas "a cura" traz uma
conotação mais profunda e poética de reparar, sanar e harmonizar.
E isso me tocou: A ideia de que a alegria, a música, o
movimento e o amor também são formas de reparar o mundo — diante das correntes
da incerteza, da dor ou da luta.
E se a rumba flamenca
me trouxe a ideia de que “o mundo se arregla con rumba y amor”, minha
experiência afetiva do Sul me lembrou que essa verdade já tinha endereço
conhecido e cheiro de fumaça de lenha. Ela mora no galpão da poesia gaúcha,
onde “a gente se reúne pra consertar o mundo”, cantar e dançar ao redor do
fogo. São linguagens distintas — a paixão vertical do flamenco e a
horizontalidade comunitária do galpão — mas que se reconhecem mutuamente. No
fundo, dialogam como duas formas de calor humano. E ambas me devolvem essa
sensação de que o mundo só endireita quando pulsa em conjunto.
De certo modo, trata-se da mesma sabedoria ancestral: contra
a dor que isola e o cansaço que corrói, opõe-se o remédio milenar do ritmo
compartilhado. A palavra que acolhe, o compasso que reúne e o gesto que nos
devolve à pertença. O verdadeiro progresso — como minha paciente intuía — não é
vencer a batalha de uma vez por todas. É lembrar-se de buscar, de tempos em
tempos, a própria roda, o próprio ritmo, o próprio galpão interior. Talvez seja
esse o único remédio confiável, com sua posologia exata e silenciosa.
Essa fusão entre o ímpeto gitano e a resistência campeira forma um panorama belo da mesma verdade essencial. A arte, em sua forma mais encarnada e coletiva, é um ato permanente de reparação do mundo e de nós mesmos.
Agora, enquanto me preparo para partir rumo à Velha Bahia, sinto que algo amadiano se infiltra no tempero da escrita. Talvez fosse o próprio Jorge Amado quem desse a palavra final, com sua Bahia de todos os santos e todos os pecados. E sua convicção mansa de que o coração humano só se reorganiza no calor das alegrias partilhadas.
Ou Amado diria, com sua graça: “Não adianta, meu rei. O coração
pesado só se alivia no embalo do samba; a injustiça do mundo só se digere na
panela de um mocotó compartilhado; e a solidão mais funda tem cura marcada na
próxima roda de capoeira ao som do berimbau.” A rumba e o galpão gaúcho seriam,
então, a mesma coisa: a certeza de que, enquanto houver um pandeiro ou uma
gaita para tocar, um fogo para cercar e um amor — mesmo o mais simples, o da
amizade — para celebrar, o mundo, ainda que por uma noite, se conserta. E
acredito nisso de forma inteira e convicta.
Diria ainda que é preciso reconhecer e valorizar essa espécie de alma cultural que nos alimenta. A arte que sustenta o espírito, aquece o corpo e manifesta a beleza que nos forma. Reconhecer essa hora — a hora da festa, da dança, do amor — não é fugir do trabalho interno permanente. É, paradoxalmente, uma forma de recuperar forças para retomá-lo no dia seguinte.
O ciclo se fecha com essa certeza amadiana: a vida exige luta, mas se
sustenta na alegria. E talvez seja essa a mais profunda teologia do cotidiano.
Mas como tudo isso aconteceu? Qual sementeira me lançou a
tantos universos ao mesmo tempo? Instantes antes de sair, cumprindo quase
mecanicamente as tarefas do dia a dia, havia em mim aquela pressa que arrasta a
alma. E lá estava meu gato Ônix, silencioso, atento como um pequeno mestre
felino. Seguira-me pela casa inteira em sua versão “Dog”, até que parou, firme,
dizendo tudo sem dizer nada. Eu já sabia o que ele queria.
Queria subir ao meu ombro — seu mirante particular. É sempre
nesse momento que o rebatizo de Papagaio Antuérpio, meu papagaio de pirata,
sempre pronto para alcançar o ponto mais alto daquilo que estou construindo.
Ali, ronronando feliz, ele explorava tudo com cuidado: cheirava, escalava,
testava superfícies com as unhas, como se avaliasse meu trabalho. Era uma
espécie de editor felino, criterioso e silencioso. E seu ritual sempre me
devolve ao centro, pois é uma pausa, que faço com prazer.
Chegamos juntos à grande janela da garagem, que se abre para algumas árvores. O sol filtrava-se pelas folhas, e o vento, com sua ação quase instrumental, roubou nossa atenção. Parecia música da natureza, uma dança leve e ancestral. Aquilo me acalmou profundamente, como um toque vindo de algum lugar anterior à linguagem. Era uma festa silenciosa, uma beleza em estado puro. E naquele instante tudo parecia se alinhar.
Para Platão, a beleza não é só algo “bonito” aos olhos ou agradável aos sentidos. Ela é muito mais que isso: é uma realidade divina, porque pertence ao mundo das Formas — que é, para ele, o plano mais alto e verdadeiro da existência, onde vivem as essências perfeitas de todas as coisas.
No Banquete, Platão afirma que a Beleza é a Forma que percebemos com maior facilidade. Entre todas as Formas — como Justiça, Coragem, Bondade —, a Beleza é a que mais rapidamente nos toca e nos atrai.
Por isso, quando contemplamos algo verdadeiramente belo, sentimos eros, que aqui não é o amor romântico ou sexual, mas um impulso de elevação. É como um desejo que nasce dentro de nós e nos empurra para cima, para o melhor, para o mais verdadeiro. Esse eros funciona como uma espécie de “motor interno” que nos amplia, que nos faz buscar sabedoria, virtude e, por fim, o Bem, que é a Forma suprema.
Assim, para Platão:
-
a beleza é perfeita, imutável e eterna, porque participa do mundo das Formas;
-
ela é uma ponte entre o humano e o divino;
-
ao encontrá-la, lembramos de nossa origem luminosa, ou seja, da parte de nossa alma que pertence ao mundo mais elevado.
Em outras palavras: a beleza nos desperta para aquilo que somos capazes de nos tornar. É um convite silencioso para nos aproximarmos do divino.
Por isso, cada experiência de beleza — num corpo, numa alma,
numa paisagem, numa ideia ou até num gato contemplando o vento junto ao seu tutor —
é um vislumbre do divino. Assim se entende a Beleza como experiência
espiritual.
Ela atrapalha a
respiração, causa admiração, move a alma para fora de si (ekstasis).
Desinstala, convoca, chama para o alto. E sempre devolve o sujeito ao que há de
mais verdadeiro em si.
AO TEMA INICIAL, COM CARINHO
Se O Morro dos Ventos Uivantes nos mostra o amor como força destrutiva, indomável e muitas vezes incompatível com o mundo social, Orgulho e Preconceito nos apresenta um percurso de transformação. Lá, não há a tempestade eterna das charnecas; há, sim, um retrato mais luminoso sobre como o encontro humano pode gerar mudança qualitativa.
Elizabeth Bennet e Mr. Darcy também vivem seus conflitos internos — orgulho, feridas narcísicas, julgamentos precipitados, idealizações e mal-entendidos. Mas, diferentemente de Heathcliff e Cathy, eles se permitem mudar. A narrativa é uma coreografia de autoconhecimento: Darcy aprende a suavizar o orgulho; Elizabeth, a rever seu julgamento. Ambos descobrem que a mudança não é apenas possível — é necessária para que o encontro aconteça de fato.
Onde Brontë mostra o conflito como destino, Austen mostra o conflito como caminho.
Onde Brontë encena o amor como tormenta, Austen revela o amor como processo.
Onde Brontë descreve identidades enrijecidas, Austen trabalha identidades que se refinam no contato com o outro.
Essa diferença não é apenas estética: é filosófica. Orgulho e Preconceito propõe que a relação humana pode ser reparadora — que o indivíduo pode aprender, crescer, transformar seus traços rígidos em algo mais suave e consciente. Assim, oferece uma resolução mais positiva, reflexiva e aberta ao amadurecimento.
E talvez seja isso que, no fim, alimenta o tema deste ano — mesmo que por caminhos que ainda estão se definindo. Entre os extremos de Brontë e Austen, entre a devastação e o desenvolvimento, entre o destino trágico e a mudança íntima, seguimos procurando o tom certo: aquele que reconheça as dores, acolha as incertezas e aceite que, na vida real, o “trabalho permanente” não é castigo, mas possibilidade.
Porque, ao contrário narrativa acirrada de Brontë, o ser humano guarda uma enorme capacidade de mudança. As dores podem ser atravessadas; as incertezas, compreendidas; os conflitos, transformados. Não é simples — nunca é. Mas é possível, desejável e, às vezes, até belo.
VAMOS ÀS DORES : O AMOR IMPOSSÍVEL NO FLAMENCO
No flamenco, o amor impossível não é apenas um tema: é uma
força vital que atravessa séculos. Quase tudo nasce de um afeto que não
encontra lugar no cotidiano, de um desejo que arde por dentro, mas que o mundo
recusa. Os ciganos andaluzes transformaram essa experiência em arte: em cante
jondo, em lamentos que sobem da garganta como se viessem de outra vida. É a
ferida transformada em canto. E o silêncio tornado gesto.
O amor impossível aparece como destino, como algo escrito na
alma, mas nunca realizado na matéria. Surge como tensão entre liberdade e
desejo: amar quem não pode ser preso, quem pertence a outra lei. Também aparece
como mistério e silêncio: o que se ama não se pode dizer; o que se sente só
encontra expressão no compasso. E surge como abismo compartilhado: dois que se
veem profundamente, mas cuja união se desfaz ao toque da realidade. Tudo isso
arde na dança.
No flamenco, aquilo que não pode ser vivido pode ser
bailado. O impossível respira ali, como quem encontra um lugar provisório para
existir. Por isso, paradoxalmente, o amor impossível é um dos amores mais
verdadeiros dessa arte. É feito de intensidade, entrega e ferida aberta — e o
flamenco entende essa gramática como ninguém.
CORRENTES TEÓRICAS — Freud, Jung e Lacan
A expressão “dores, incertezas e trabalho psíquico
permanente” atravessa as três grandes tradições da psicanálise. Cada uma
oferece uma resposta própria sobre por que sofrer é inevitável, como lidamos
com o não saber e por que a psique exige um trabalho contínuo. Freud vê a vida
psíquica como conflito; Jung, como caminho simbólico; Lacan, como falta
estruturante. Juntas, as três formam um tripé consistente. E revelam o drama
humano em profundidade.
Para Freud, o sofrimento psíquico surge da tensão entre
pulsões, limites e desejos que não alcançam expressão. A incerteza decorre do
inconsciente, território do não saber. E o trabalho psíquico é um processo
contínuo de elaboração, nunca terminado. Para Jung, as dores são sinais de
individuação, sintomas que indicam descompasso entre ego e Self. A incerteza
abre a porta para o simbólico, para o mistério que amplia a alma. O trabalho
interno é alquímico e vitalício.
Já para Lacan, a dor nasce da falta estrutural do sujeito,
marca da entrada na linguagem. A incerteza é constitutiva: não existe essência,
apenas divisão. E o trabalho psíquico é reposicionamento contínuo frente ao
desejo e ao gozo. A análise termina, mas o inconsciente não. Integrados, os
três concordariam que a dor é inevitável, a incerteza é estrutural e o trabalho
interno nunca chega ao fim. A cura não apaga conflitos: transforma a posição
subjetiva.
E onde você entra nisso? Quando fala de dores, incertezas e
trabalho psíquico permanente, toca o núcleo da experiência humana segundo os
três autores. Freud diria que você elabora conflitos. Jung, que você está em
individuação. Lacan, que reposiciona o desejo frente à falta. A vida pede tanto
a seriedade do enfrentamento das sombras quanto a leveza da rumba e do ritmo
que arrasta para a dança. Não se trata de escolher um ou outro, mas de
alterná-los. E permitir que se completem.
O ano se fecha, e fico com os dois fios da mesma meada: a
paciente que segue sua luta corajosa, e a rumba que insiste em lembrar, entre
acordes, que às vezes consertamos o mundo dançando. Com amor, presença e a
inteireza possível. E assim seguimos: sabendo que a estrada nunca termina, mas
que, vez ou outra, a dança reabre o caminho. E, por um instante, o mundo se
ajeita — ou pelo menos nossa alma se ajeita dentro dele.
Carlos Costa França


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