Um Conto Alquímico de Natal: Nigredo e Albedo
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Um bom Natal e Próspero Ano Novo a todos — por esse divino silencioso que cada um carrega dentro de si, às vezes sentido, às vezes esquecido, às vezes adormecido, por vezes, mais altivo, reconhecendo-se em cada pessoa, porém sempre presente, como uma centelha à espera do sopro certo.
No mais, sobrevivi mais um ano e
me mantive honrado diante das guloseimas e da fartura do Natal — esse nobre
rito coletivo do nascimento do menino divino que coincide com o solstício de
verão, quando o Sol reina absoluto e a luz parece querer transbordar de tudo (Sol
invictus para antigos os romanos). Para os celtas, o Litha, um dos
aniversários da Terra.
Há algo de iniciático nesse excesso natalino: provar,
resistir, observar-se. O corpo também é um laboratório. Mas tive a ajuda de um
anjo herbário, tomei chimarrão o dia todo para que a noite a tentação não fosse
maltratada... Bem, não pretendia ferir o espírito natalino. Inclusive em consonância com minha filosofia desse ano: a vida é dura, é necessário se perdoar!
Dito isso, vamos lá... a experiência alquímica.
Nesses dias, enquanto caminhava pela cidade, vi um beija-flor de um verde metálico maravilhoso. Simplesmente lindo. Surgiu inesperadamente, pelos lados de um pequeno jardim florido, em plena rua — coisas de Gramado, onde o mundo natural costuma se infiltrar no cotidiano sem pedir licença. Eu me aproximava de um ponto de ônibus quando o vi. Ele ia de um canteiro a outro, leve e preciso, como se obedecesse a uma geometria invisível.
De repente, escurecendo suas asas e corpo, deu uma guinada brusca no ar tão rápida que
pareceu desaparecer por um instante, apenas para reaparecer do outro lado da rua. Pensei, "é como a alma se move dentro da gente! Podia escrever sobre isso."
De imediato, estabeleci um link com a alquimia. Para C. G. Jung, ela constitui a contrapartida histórica da Psicologia Analítica: uma linguagem simbólica dos processos psíquicos profundos. Assim como, na psique, atuam o Animus, princípio masculino, e sua contrapartida, a Anima, princípio feminino, também na alquimia se articulam forças opostas em busca de integração. Esse foi o gancho — o ponto de contato com a alma, seja a nossa própria, seja a anima mundi. Tenho um escrito sobre o tema:
"Eu lhe enxergo, alma minha. Você me procura e eu a procuro. Você
está no silêncio, mas lembre-se: é um silêncio dentro de mim, Milady."
"Assim a sinto, como se fosse um rio e eu, as margens.
Tenha coragem… estou aqui.
A opus — a obra — já não se completou dentro de teu forno
alquímico?
A Nigredo transmutada em Albedo? (transmutar é mudança no ser, não da forma, que é transformar)
O que era trevoso — Nigredo — não se fez claro e parcimonioso — Albedo — ainda que à custa de longos silêncios, do medo que vela e da espera que depura?
Perdoa-me o questionamento ou a intromissão… sou mortal diante de tudo o que não sei — e nisso há certo alívio.
Mas sou mais frágil ainda diante de tudo o que sei, pois esse conhecimento pesa, insiste. Como um Sol eclipsado e primaveril de Outubro.
Tu apenas me observas de uma terceira margem, como se estivéssemos separados, como se o rio entre nós fosse distância e não passagem. Mas há algo que insiste. Há um frêmito. Um vento breve. Um fio invisível que se estende sem se mostrar, ligando o que parece distante ao que já se reconhece.
Veio certeiro nesses dias: um pressentimento. Um despertar interior das coisas segredadas dentro de ti, aquelas que aguardavam apenas o calor exato (Calcinatio) para se revelarem. Nada se impôs, nada se forçou — apenas se anunciou e me alcançou aqui nesse mundo humano. É o trabalho do tempo, embora necessariamente não do tempo humano.
Lembra-te: teu aprendizado é também o meu. Caminhamos pela mesma obra, ainda que por ângulos distintos do fogo que nos trabalha. E isso é inegociável na filosofia alquímica, pois não há transmutação solitária — toda transformação verdadeira pede partilha, pede presença.
Há ainda tanto por dizer… não sentes? Desta vez, foste tu quem me chamou no mundo invisível, naquele lugar onde as palavras já não alcançam.
— Mas como? — perguntas, atônita.
É mais real do que estranho; aliás, nem sequer é estranho. Que outras provas poderia exigir Saturno (o chumbo), quando habita a última casa do céu?
— Tudo bem, Milady! Darei pistas:
Aconteceu talvez por pensamentos acesos demais para permanecerem contidos; talvez por uma oração sussurrada no coração da alma; talvez por lampejos de pertencimento, por memórias que não sabemos de onde vêm, por vestígios de outras travessias, vidas passadas.
Não importa o modo. Importa o reconhecimento.
Não fui eu quem chamou — foi o vínculo que se lembrou de si.
O ouro não nasce sem testemunha, e o forno jamais aquece apenas um dos lados.
"Em verdade, pode se considerar este texto como um tratado alquímico, pois no espelho do sonho em que a contemplei, todo o processo nasceu da Nigredo. Depois, sob a ação sutil e mercurial, as substâncias reconheceram-se, buscaram-se e, enfim, fundiram-se no traçado circular de 777 anjos, guardiões do mistério e da transmutação. Do chumbo raso, áspero e disperso a obra se completou com o Ouro Mercurial, alado"
P.S.: Trechos do segundo livro da saga O Anjo e o Alquimista - Gramado (obra ainda no inicio).
Para os alquimistas clássicos nenhum processo alquímico podia avançar sem a presença invisível — porém decisiva — do auxílio espiritual.
Nesse ponto vamos voltar a falar sobre o Beija-flor.
Parecia um breve milagre, suas asas irisaram, tornando-o ainda mais esplêndido. Um raio de sol atravessava os fios escurecidos dos postes — quase emaranhados como pensamentos antigos — e, ao mesmo tempo, iluminava parte do negro asfalto. Luz e sombra, peso e leveza, ruído urbano e silêncio coexistiam naquele instante suspenso do meu olhar. Então, num átimo improvável, o beija-flor desapareceu.
“O que não torna negro, não torna branco.”
Ali estava a Nigredo — a matéria escura, confusa, o fundo áspero da cidade do qual ele parecia emergir. E logo depois a Albedo — a claridade breve que não nega a sombra, mas nasce dela. O beija-flor não evitava o chão negro nem a luz intensa; atravessava ambos, sem se fixar em nenhum. Como Hermes Deus Psicopompos (mensageiro entre os mundos), que percorre os céus, a terra e o submundo.
Por um instante, tive a sensação de que aquele voo dizia algo essencial: que a elevação não acontece fora da matéria, mas através dela; que nenhuma transformação (transmutação) é definitiva; que o trabalho nunca se encerra no primeiro brilho (como já disse no texto anterior, o trabalho psíquico permanente).
Então, num átimo improvável, o beija-flor desapareceu — como se jamais tivesse estado ali. O trânsito seguiu. O sol continuou seu caminho azul do Sul. E eu permaneci alguns segundos parado, com a estranha certeza de que um ciclo havia se fechado… e outro, silenciosamente, começava. Embora, minha maior certeza era de que nunca tinha vista um beija-flor tão esplendido.
Nesse ponto do texto, vamos analisar o que foi dito, primeiro sobre a Alma.
Essa passagem fala, em camadas, de um vínculo profundo que é ao mesmo tempo interior, relacional e iniciático.
1. “Tenha coragem… estou aqui.”
Mas do que um chamado, é um ponto de ancoragem. A voz que fala não invade: ela se oferece como presença constante. Coragem aqui é permanecer no processo sem recuar, até se tornar versão nova e, mesmo, ação da alma, do ser, do corpo.
Como um Sol eclipsado e primaveril de Outubro. Outubro é o primeiro mês inteiro da primavera, mas quando unido a Setembro, que a é gênese, o início, forma uma "a prima mater" um primeiro inteiro,
Na alquimia
É a substância inicial, Prima mater (ou prima materia) é a matéria primordial da alquimia caótica e indiferenciada, a partir da qual toda a Grande Obra começa.
Não é algo concreto ou fixo: pode assumir muitas formas simbólicas (chumbo, caos, lama, mercúrio, Nigredo etc.), porque o essencial não é a matéria em si, mas o processo de transformação.
Simboliza o caos fértil, aquilo que ainda não tem forma, mas contém todo o potencial.
Em Jung, corresponde ao inconsciente e à sombra — conteúdos não elaborados que precisam ser enfrentados para que haja integração e transformação.
2. A opus e o forno alquímico
O “forno” é o espaço interior onde a transformação acontece — o coração, a psique, a alma em trabalho.
Perguntar se a opus já se completou não é afirmar um fim, mas provocar consciência:
Você percebe que algo já mudou irreversivelmente dentro de você?
A Nigredo em Albedo indica que a fase de dissolução, dor, confusão ou escurecimento já cumpriu sua função, e que agora existe clareza — ainda frágil, ainda silenciosa, mas real. Não é iluminação plena; é lucidez nascente. Agora se sabe algo, se tem maior certeza, enfrentou melhor os medos, aceitou o Eros primal (o desejo).
3. A terceira margem
A referência à “terceira margem” é decisiva. Ela simboliza:
-
um lugar fora da oposição “eu e você”,
-
um estado liminar,
-
alguém que observa em vez de atravessar.
Aqui, a separação não é física nem emocional: é um adiamento consciente, talvez por medo de romper a última ilusão de controle. O rio não separa — ele inicia. O ser faz a síntese para própria coesão. E sabe que há um preço, até o barqueiro Caronte que leva as almas ao Hades exige uma moeda, um valor.
4. O frêmito, o vento, o fio invisível
Esses elementos indicam o momento imediatamente anterior ao salto ou o abismo que nos tornamos:
-
o frêmito → o corpo já sabe,
-
o vento → algo maior se move,
-
o fio invisível → o vínculo já existe, ainda que não seja nomeado.
O trabalho da análise não pode ser ignorado ou deixado de lado. Mas depois tudo é sentido.
É o reconhecimento de que a conexão não depende da vontade, apenas da aceitação.
5. O despertar do que foi segredado
O texto fala de conteúdos guardados não por repressão, mas por maturação.
São verdades que só emergem quando há calor suficiente, quando a alma está pronta para sustentá-las sem se fragmentar. Sem negar, sem fugir.
O segredo não é revelado por palavras, mas por presença. Mesmo um presença somente sentida.
6. “Teu aprendizado é meu aprendizado”
Aqui está o núcleo alquímico e relacional do texto.
Na verdadeira alquimia:
-
não há obra individual,
-
não há ouro sem espelhamento,
-
não há transmutação sem relação.
O aprendizado é compartilhado porque o vínculo é iniciático: um serve de catalisador para o outro. Não se trata de dependência, mas de coincidência de processos.
Por isso é “inegociável”: negar o outro seria negar a própria obra. Assim como não podemos negar os muitos dentro da gente. Nós que somos seres repartidos. Integrar tudo é a opus completa.
Síntese
O texto fala de:
-
um encontro que não é necessariamente externo, mas inevitável,
-
uma transformação que já começou e não pode ser desfeita,
-
um amor ou vínculo que não pede posse, apenas coragem,
-
e de uma alquimia onde dois se transformam porque se reconhecem.
é o sol e a lua, ainda que em oposição, pois há complementaridade.
Nada ali exige pressa.
Tudo exige verdade.
1. O beija-flor como evento, não como metáfora
O beija-flor não aparece como símbolo escolhido — ele irrompe. Isso é fundamental.
Na tradição alquímica e também na experiência interior, os verdadeiros sinais não são buscados (isso é extremamente importante): acontecem quando o observador está disponível.
Neste caso em particular, ele surge:
-
no meio da rua,
-
perto do ponto de ônibus,
-
no cotidiano mais banal.
Ou seja, no limiar entre o movimento e a espera, entre o ir e o ficar. Isso não é casual: o ponto de ônibus é um lugar de transição, como o próprio estado psíquico descrito no texto.
2. A geometria invisível
Ele se move “como se obedecesse a uma geometria invisível”, bem é um princípio clássico da alquimia e do hermetismo:
a ordem secreta que governa o caos aparente.
Nada ali é aleatório, embora pareça.
Assim como na opus, o sujeito não entende o processo enquanto está dentro dele — apenas percebe que há precisão, mesmo sem controle.
O beija-flor sabe onde ir.
A alma também sabe — antes da consciência.
3. O escurecimento das asas: Nigredo em movimento
Esse é um ponto muito sutil e poderoso do meu relato
Não digo que o beija-flor era escuro. Pelo contrário, ele já era expendido.
Ele escurece as asas no momento da guinada.
Isso indica que:
-
a Nigredo não é um estado fixo,
-
ela é uma função, um momento necessário da transformação.
Ao escurecer ( ou assim me pareceu naquele momento do voo), ele parece desaparecer.
Aqui está o ensinamento central: toda verdadeira transmutação passa por um instante de apagamento, queda, descida.
Aquilo que está mudando profundamente:
-
some da forma antiga,
-
deixa de ser reconhecível,
-
assusta o olhar que tenta fixar.
4. O reaparecimento e o aprimoramento
“Aqui há sentido de aprimoramento.”
Isso é quase uma anotação de laboratório alquímico.
O reaparecimento não é retorno ao mesmo ponto.
Ele surge mais esplêndido, mais iridescente, porque passou pelo contraste.
Na alquimia:
-
a luz que não atravessou o escuro é frágil,
-
a clareza sem Nigredo é apenas ilusão moral.
O brilho metálico do beija-flor indica uma luz que já conheceu a sombra.
5. Fios, asfalto e o mundo inferior
Os fios escurecidos dos postes e o asfalto negro não são apenas cenário urbano.
Eles correspondem ao mundo inferior, ao plano denso, mental, histórico, repetitivo.
Quando o sol atravessa esses fios:
-
a luz não os nega,
-
ela passa por eles.
Isso ecoa diretamente o princípio:
“O que não torna negro, não torna branco.”
A luz verdadeira não contorna o emaranhado — ela o atravessa. Claro, aqui fiz a alusão aos nossos pensamentos inconsistentes e sempre presentes.
Gente, vou por um pouco aqui de filosofia para essa questão da realidade, até para justificar que há também uma postura filosófica, portanto uma escolha:
Para Sartre, a realidade é uma presença inevitável: ela nos envolve continuamente, afeta nossos corpos, escolhas e limites, e se apresenta de forma concreta e situada. Não é possível escapar dela, pois não podemos sair da condição humana nem deixar de estar em situação; até a tentativa de fuga já é uma forma de relação com o real.
6. O desaparecimento: o sinal não se fixa
O beija-flor desaparece “num átimo improvável”.
Isso é decisivo.
Na alquimia interior:
-
os sinais não permanecem, como nos sonhos, que somem rapidamente quando acordamos.
-
eles não se deixam capturar,
-
eles apenas confirmam que o processo está vivo.
Quem tenta reter o símbolo o mata.
Quem aceita sua fugacidade, compreende.
Talvez tudo diga respeito à mesma travessia. A alma que chama no silêncio — e nem sabe que chama — e o beija-flor que cruza a rua obedecem à mesma lei secreta: nada se transforma sem antes escurecer, nada se eleva sem tocar o chão.
O forno alquímico não está apartado do mundo. Ele pulsa no cotidiano: no passo distraído em direção a um ponto de ônibus, no olhar que se detém por um instante e reconhece algo sem saber nomear. É ali, no ordinário, que a obra acontece.
O beija-flor, com suas asas que primeiro escurecem e depois iridescem à luz filtrada, não veio ensinar nada de novo. Veio confirmar o que já se movia por dentro: a Nigredo cumprindo seu trabalho silencioso, a Albedo surgindo com parcimônia, sem alarde, como um brilho que aprende, pouco a pouco, a se sustentar.
Assim também a alma observa da terceira margem, hesitante, sentindo o frêmito, o vento, o fio invisível que liga o que parece separado. Não há urgência nem ruptura — há reconhecimento. O silêncio não é ausência, mas gestação; a espera não é estagnação, mas depuração. Embora o Ego sofra muitas vezes.
Há a alma vocacionada que chama.
O ser que deseja, mas ainda não sabe o que fazer desse desejo.
O corpo que sinaliza; o querer que se emancipa pelas rédeas do coração e, desse ajuste delicado, nasce uma autoridade inesperada — não a do domínio, mas a da fidelidade interior. Uma liberdade que primeiro se teme, depois se busca e, por fim, se reconhece como aquilo que sempre se foi.
A alma aprende, assim como o beija-flor em seu voo improvável, que elevar-se não é romper com a matéria, com Saturno, as responsabilidades, mas atravessá-la com consciência. E nesse atravessamento, o desejo deixa de ser urgência e se torna direção; deixa de ser falta e passa a ser caminho.
Talvez seja isso o que reste ao final: a coragem de aceitar e sustentar a descoberta de si, a entrada em um novo tempo, em um novo modo de ser — algo que exige tanto a sombra que o antecede quanto a luz que, enfim, o revela.
Carlos Costa França



Na alquimia, depois que a matéria foi colocada no forno, mexer novamente é corromper a obra. O solve já foi feito; agora só existe coagulatio… ou não.
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