Carta aos Tutores de Gatos & Companhia

 

 

Os gatos são criaturas naturalmente ágeis e brincalhonas. Saltam de um lado para o outro, correndo de cá para lá e de lá para acolá. Quando não estão brincando, encontram-se simplesmente andando ou parados, quietos, mas são sempre cúmplices da elegância. Mantêm-se alertas a qualquer som ou movimento, graças aos seus sentidos aguçados e vigilantes. Assim, vivem a percorrer cantos e espaços, locais baixos, altos e mais altos, alguns lugares prediletos, outros por explorar e outros ainda por abandonar.

Todos os dias, entregam-se às mais livres brincadeiras, exercendo a sua curiosidade nata e irrefreável, nesse reino versátil entre todos os felinos do mundo.

 Muitas vezes, dão a impressão de que seus maiores interesses estão reunidos em um único propósito, oscilando entre dois polos: lançar-se desenfreadamente em aventuras e descobertas para, em seguida, entregar-se a um sono tranquilo e vocacionado. Um sono aveludado. Sim, não é um sono comum, descanso, repouso ou quietude, mas sim uma manifestação de uma arte refinada, uma assinatura onírica única e autorizada.

Ou talvez, pinceladas de delicadeza nessa forma onírica, como se a existência ali transbordasse em seus melhores atributos de serenidade. Uma sinceridade onírica.

Vivem para esse fio invisível da vida e pela vida, onde todos os seres anelam de alguma maneira, conforme a natureza de cada espécie. Embora alguns arrisquem dizer que os gatos são diferentes, pois eles andam por cima desse fio, como equilibristas ora caprichosos ora displicentes. Reúnem, num só momento, a obra de arte do seu movimento a seus modos independentes, e volta e meia teimosos.

De toda sorte, os gatos não apresentam apogeu, culminância ou destaque necessariamente. Apresentam destino.

E é sabido que mesmo a mais rude disposição de certos indivíduos pode elevar-se somente ao observá-los. Os felinos possuem essa aura singular, uma espécie de emancipação existencial. Naturalmente dotados de graça, não se esforçam de modo algum quanto a isso. São fofos por natureza. E a própria natureza se dobra para acariciá-los com mãos sobrenaturais, dotando-os de certo mistério encarnado, de uma graciosidade incontida.

São ali versos preciosos da vida. Prece, ornamento e altar. Tudo de uma vez.

No entanto, a essência de um gato transcende ainda mais, não se limitando apenas à vontade da natureza de expressar uma delicadeza maior ou uma versão da harmonia na rudeza da matéria. Toca em algo que beira a perfeição. Mesmo quando afirmamos que a existência das espécies é algo natural e comum, falhamos ao considerar a dos gatos. Pois há como que uma força senhora da suavidade e maciez, veemência na sua criação. Além disso, a opereta do ronronar dos gatos parece ter o condão da cura, do alívio e do bem-estar.

 Será o ronronar dos gatos o som inicial do universo? Ah, não importa.

O gato, em sua simpática irreverência de ser possível, adere à fórmula de um elixir milenar que nos liberta, pois nos ensina que o agora é a única vida, o único tempo e o único existir. Marca algo no imediato da vida, que se comunica aberta, ampla e levemente, sem qualquer intenção de ser assim. Naturalidade que encanta a luz no olhar de quem enxerga o essencial. O essencial, esse valor que pode saltar ou atravessar montanhas.

E saibam todos, os gatos definitivamente são muito mais zelosas mensagens do que mensageiros.

Ao menos, fazem um gesto de nos capturar sem nos possuir, sem nos aprisionar, sem nos forçar a um afeto. Por outro lado, nos unem ao momento terno da vida e a uma alegria calma e genuína. Tocamos o universo das coisas fofas, das imobilidades do tempo, das formas repletas no singelo... caímos, sem uma queda propriamente, nesse viço de estar no presente. No carinho do caminho de estarmos pela aliança da vida.

Nos oferecem sentido e viço, e, por vezes, mistério vivo!

E se de nada me esqueço neste momento, podemos dizer ainda isto: são afetuosos e companheiros, místicos e existenciais. Estão em nossas pernas nos marcando e chamando nossa atenção. E não raro, estão em nossas dores, presentes, nos olhando, nos guardando... nos velando. No entanto, seguem a filosofia do ser, do ser livre. E aos modos do usufruto, frívolos ou não, de se distraírem com o mais simples. São objetos fofos vivos e magnéticos, quase estelares, fitando o finito.

Anelam o tempo sem compromisso, refazendo sentidos concretos, abstratos e estéticos.

Os gatos sinuosamente se movimentam na possessão de si, sem ter certeza de nada. E sem precisar ter. Apenas servindo a existência com o comum, o mais comum. E ali, comumente atentos e curiosos, em jogos de aparente displicência, mas que cultivam com dedicação invejável. Correm para tudo e de tudo com a formosura à frente. Com medo e sem medo, como se fosse a mesma coisa. Entretanto, a curiosidade deles é levada muito a sério, a ponto de torná-los um perigo para si próprios.

Ser gato invariavelmente é um status de risco pausado, com autoridade de mito, sete vidas como o prognóstico mais conhecido e dito.

São cavalheirescos, ostentando uma nobreza imoderada. Não há como influenciá-los fora da sua agenda inglesa. E que agenda! São implacáveis quanto a isso. Independentes, alertas e altivos, parecem carregar um trono consigo onde quer que estejam. O ar majestoso, algo petulante, intocável, distante e soberano os torna singularmente atrativos, embora para alguns possa parecer o contrário. Embora esses indivíduos não compreendam que ali está uma lição sobre a majestade do amor próprio. Fronteiras necessárias para o pleno desenvolvimento do ser.

A desinência do amor próprio não trai a vida; pelo contrário, a enriquece, atraindo-a. É tão vital quanto o ar que respiramos.

Os gatos, como seres fascinantes, atravessaram séculos, apesar de terem sido perseguidos e mesmo amaldiçoados. Se a ignorância os diminuiu em algum momento no mundo dos homens, o afeto, a beleza, a elegância e o mistério que sempre os envolveu governaram as sementes do tempo. Se lembrarmos do Antigo Egito, veremos que o gato nesta civilização era o grande companheiro daquele povo e um sinal de benção nos lares.

 “Por quem os gatos ronronam? Eles ronronam por ti, criatura!”

Sim, o Antigo Egito nutria um amor genuíno e um profundo respeito por esses animais. Com o passar do tempo, essa admiração se transformou em devoção, pois compreendiam que os felinos possuíam atributos extraordinários. Além de serem mestres na eliminação de pragas, também tinham o poder de dissipar a negatividade dos ambientes. Eram vistos como animais sagrados, associados à promoção de fertilidade, saúde e proteção. E essas qualidades então foram personificadas na figura divina de Bastet.

É certo, o amor divinizado pertence a qualquer época, a qualquer lugar, a qualquer ser vivente e a qualquer um disposto a amar ou praticar o amor.

Às vezes, um singelo olhar afetuoso de um gato nos transporta para o vasto céu, recordando-nos do cintilar infinito das estrelas. Elas percorrem a imensidão do espaço até encontrar refúgio no âmago da existência, é uma pista, um sinal de que estamos ligados a tudo, incendiando nosso próprio coração, pois esse afeto se manifesta como o brilho solar. Assim, o amor, em sua essência pura e despretensiosa, se revela como a vestimenta mais solenemente fofa da existência.

Esse sentimento nos envolve em uma aura calorosa e reconfortante, conectando-nos a cada movimento e olhar felino, numa comunicação que transcende as palavras, a ponto de tocar os acordes feéricos do coração.

Mensagem do Livro, OS GATOS DE ALFHEIM.

Carlos Costa França

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