A INCRÍVEL CÓLMEIA HUMANA

 




Admito:
esta escrita não segue um caminho linear (tem vários públicos e propósitos). Ela é composta de recortes, minicrônicas, divagações filosóficas, conceitos, explicações e reflexões.

No fundo, é a expressão de uma experiência interior. E faço isso com um propósito: oferecer algum tipo de ajuda também. 

Mas é precisamente por ser assim — tão singular e não óbvia — que eu lhe peço, leitor, que tenha esperança e paciência. Acredite que há um fio condutor, mesmo que invisível, a tecer cada parte em um todo coerente e significativo.

Nesta jornada ESCRITA, terei dois companheiros de estrada: Shakespeare e Cervantes. Acredito que o gênio de um e a construção genial do outro em Dom Quixote formarão o contraponto perfeito para a experiência textual que proponho.

OS TÓPICOS PRINCIPAIS

Antes, UM ELO COM O AGRADECIMENTO
EVENTOS ANTES DOS ACONTECIMENTOS DESAFIADORES
UM ACENO ASTROLÓGICO
Um sonho de sombra  e luz
VAMOS "TEORIZAR UM POUCO" — INTUIÇÕES, PRECOGINIÇÕES
UM OUTRO ASPECTO DE NOSSAS ESCOLHAS
MINHAS OBSERVAÇÕES SOBRE ASTROLOGIA
MAIS UM ADENDO (
Intuição; Insight; Fantasia; Racionalização)

Minicrônicas

ENFIM, MINHA JORNADA INTERIOR
O UBER - Um surfista profissional
O BABEIRO DO MEU PAI — OS FILHOS
UM CERTO EXU-MIRIM
UM TIO POSTIÇO DE OCASIÃO —  tio Demir
Uma Experiência em um Abrigo de Idosos em Itororó
UM DIA IRMA DULCE
O Retorno a Gramado — celebrando a cidade

E para iniciar,  farei uma suplica ao Ilustre escritor espanhol, o Senhor Miguel de Cervantes:

 

Concedei-nos, ó cavaleiro da palavra justa, a coragem de Sancho para questionar os caminhos, mas a paixão de Quixote para jamais deixar de percorrê-los.

 

“O amanhecer não está longe. […] Já cheira a alva; não percamos a esperança no amanhecer.”

Capítulo XLIII, Segunda Parte. Dom Quixote.

 

E aqui, uma poesia bem gauchesca, que lembra essa passagem de Dom Quixote:

    "Já não é noite, ainda não é dia, o sol teima em nascer.

    A espera foi longa, mas a esperança teima em vencer."

Luiz Marenco (Música: "Amanhecer no Galpão")

 

Já o trecho abaixo é por minha conta, um plagio quixotesco, um socorro:

“Senhor”, pondera Sancho, “confesso minha mente em alvoroço. Tantos recortes, veredas teóricas que se bifurcam... Haverá, ao fim, um oásis de clareza? Bastará a esperança de compreender como paga por tão longa jornada ESCRITA?”

“O que é o fim”, retruca Quixote, “diante da majestade do percurso? Cada página é um moinho a trabalhar, talvez um sustento para alma (a psique); cada conceito, um mundo a conquistar. A grandeza não está em chegar, mas em respirar a viagem. Cada obstáculo superado é um território novo do entendimento, ganho para sempre.”

 

ANTES, UM ELO COM O AGRADECIMENTO

 

Há tantas pessoas para agradecer nesta minha jornada EXTERIOR e INTERIOR que o primeiro passo, é um passo amoroso.  O fato é que nunca constituímos nossa vida sozinhos. Ao longo do nosso caminho, muita coisa se torna desafio — e cada superação, cada obstáculo que conseguimos transpor, deve-se em grande parte à ajuda que recebemos. Por isso, é justo reconhecer e agradecer.

Embora sempre devamos estar conectados com a gente mesmo. Isso é relevante e essencial!

Como diz o ditado, “é melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão”. E foi nessa estranha Colmeia humana — repleta de parentes, amigos, vizinhos, pessoas totalmente desconhecidas — que pude perceber o fino véu das interações que nos sustenta. E de fato, na quase noite, foram vocês as velas que não me deixaram tropeçar no escuro.

No momento, eu estava bastante sensível devido à quase tragédia grega que vivia. Isso me permitiu observar com mais disposição emocional e interesse, até mesmo  quanto em meu processo de autoconhecimento. Foi uma espécie de alquimia interior importante, ainda que a situação fosse muito difícil e exigisse otimização constante de tempo e energia.

O entorno teve um papel essencial. Vi pessoas que pareciam frágeis revelarem uma força impressionante; testemunhei coragem refinada, quase heroica; recebi apoio de desconhecidos e queridos, todos genuinamente colaborativos e abertos a ajudar.

Diante disso, fui me reinventando de uma certa perspectiva. Normalmente, queremos fugir de situações desagradáveis, porém nunca devemos prescindir dos aprendizados delas. E, apesar de tudo, sou profundamente grato. Agradeço a cada uma dessas pessoas que iluminou meu caminho.

    "Não era eu sozinha que me movia: éramos todos, laços visíveis e invisíveis, um tecido de encontros."

    — Inspirado no poema "Retrato". Cecília Meireles (Brasil, 1901-1964)

 

EVENTOS ANTES DOS ACONTECIMENTOS DESAFIADORES

 

É necessário ser verdadeiro, então vamos lá!

 

A vida é um aprendizado contínuo. Cada experiência é um rascunho que nos prepara, de forma orgânica e natural, para os próximos passos, nos dando mais segurança para seguir diferentes caminhos.

Mas, às vezes, no meio desses ensaios, temos um lampejo diferente: uma intuição ou uma prévia (uma presciência) do que ainda está por vir na grande tela das nossas vidas.

Como mencionei na experiência textual anterior, na frase “A vida é bela e perigosa”, surgida  dentro do contexto clínico, permaneceu ressoando em minha mente até se transformar no referido texto (acreditei que era suficiente, pois era quase um exigência interna fazer o texto).

Era como se cada palavra carregasse um eco, lembrando-me de que a existência nunca se apresenta com uma única face.

"Pouco depois, enquanto trabalhava na segunda edição do meu livro O Direito e o  Dever de Curar-se (ainda em curso e sem previsão), encontrei-me com uma frase de Carl Gustav Jung, fundador da Psicologia Analítica, que diz o seguinte:

“O mundo é brutal e belo. Negar sua dualidade é fugir de si mesmo.”

Curiosamente, não me lembrava da citação no livro (ou simplesmente joguei lá para o inconsciente, enfim). Foi um choque. Algo se aproximava, prestes a se revelar. A sensação foi forte, mas depois, como muitas marés interiores, passou.

 

UM ACENO ASTROLÓGICO

 

Nesse ínterim, ao analisar meu mapa astral e observar os trânsitos — o movimento das órbitas planetárias no momento —, deparei-me com uma configuração significativa. Urano, o planeta do inesperado, do súbito, daquilo que rompe e traz o inusitado, ingressava em Gêmeos (signo da comunicação, viagem, aprendizado, escrita, mensagem, dualidade), justamente na minha Casa 12 — regida pelo inconsciente, pelo karma, pelo que permanece velado e atua nos bastidores.

 

E esse Urano em trânsito formava uma oposição direta ao meu Marte natal, um planeta que rege a força, a coragem, mas também o conflito, acidentes, brigas e guerras, tanto interiores quanto exteriores.

 

Simultaneamente, Marte em trânsito fazia conjunção — a conjunção é o aspecto mais forte, que funde energias — com meu Urano natal, localizado na Casa 3 (a esfera da comunicação, das viagens, dos estudos, dos irmãos e vizinhos), no signo de Virgem.


Para completar, Mercúrio — regente de Virgem e de Gêmeos — retrogradava em Leão. Nem vou mencionar.... Aff.... Saturno (responsabilidade, Karma, disciplina, lições difíceis), Netuno (doação, espiritualidade, estudo superior, mestre, missão, estrangeiro, viagens logna) no meu Meio do Céu retrogradando também. Nada bom! As perspectivas astrais não eram boas, por esse jogo simbólico.

 

Nesse sentido, tive aí uma intuição ruim, embora não soubesse o que era exatamente.

 

UM SONHO DE SOMBRA E LUZ

Também tive um sonho relevador, um sonho que até hoje consigo me lembrar bem — tenho boa memória — mas não consigo lembrar o dia em que o sonhei.

Era um sonho que mostrava uma passagem da escuridão para algo luminoso. Não vou contar todos os detalhes, mas, em termos básicos, essa foi essa a essência.

 

Fiquem atentos! Dentro de um processo psicoterapêutico — seja na psicanálise, na psicologia analítica ou até fora dele — os sonhos têm um papel muito especial. Vale muito a pena anotá-los, porque isso permite identificar padrões, captar mensagens internas e trabalhar pontos importantes da nossa psique.

 

O que quero dizer com tudo isso é que houve, sim, vários sinais antes dos fatos. Um verdadeiro coro de advertências e intimações do inconsciente, que se manifestou por meio de frases sincronísticas, configurações astrológicas tensionadas, intuições e sonhos com carga simbólica premonitória.

 

Era como se o universo gritasse.

 

VAMOS "TEORIZAR UM POUCO" — INTUIÇÕES, PRECOGINIÇÕES

 

Esse tema não é novo nos meus escritos (já escrevi sobre o mesmo), só vou aprofundar mais um pouco.

 

Partirei dessa experiência visceralmente humana das nossas intuições com “aporte teórico”, entrelaçando-as depois  com as  NOSSAS ESCOLHAS, tudo isso dentro de um panorama mitológico e literário."

  

De fato, o grande desafio inerente às precognições e intuições – esses lampejos que parecem transcender a lógica – reside não em sua ocorrência, mas em sua interpretação. A mitologia de forma recorrente e quase didática, já explorava essa armadilha: o oráculo entrega uma verdade, mas sua leitura literal, enviesada ou arrogante conduz inexoravelmente à tragédia (ao menos é assim na mitologia).

 

É o que vemos no mito de Édipo, onde a profecia se cumpre precisamente porque todos se empenham em evitá-la, ou na história de Cassandra, que, mesmo dotada do dom da visão, é amaldiçoada pela incredulidade alheia.

 

Essas narrativas arquetípicas nos alertam que um presságio nunca é um retrato fiel e descomplexado do futuro, mas sim um símbolo cifrado, um quebra-cabeça metafórico que exige discernimento, contexto e uma profunda humildade para ser decifrado. O perigo mortal, portanto, não está no que se vê, mas na certeira arrogância de acreditar que se entende perfeitamente o que foi visto.

 

No meu caso, contudo, a questão foi bem mais prosaica. Não houve nenhum drama épico de interpretação falha, nenhum paradoxo trágico gerado por uma leitura equivocada de sinais obscuros. A verdade é simples: diante do incerto, eu apenas tive medo mesmo. Foi uma reação humana, visceral e desprovida de qualquer camada profética ou mitológica.

Às vezes, o que parece uma premonição não passa do eco amplificado de nossos próprios temores internos, projetados num futuro que ainda não existe.

 

Do ponto de vista mais moderno

 

A mitologia clássica não é um artefato abandonado; ela é a matriz narrativa que atravessa e estrutura as grandes sagas modernas. A jornada do herói, o prenúncio do oráculo, a tragédia da interpretação — são todos arquétipos que migraram dos templos de Delfos para as salas de cinema e as páginas dos romances.

 

Em Star Wars, a profecia do "Escolhido" que traria equilíbrio à Força é interpretada por todos (Jedi e Sith) como uma previsão de poder e destruição. Anakin, em sua arrogância, busca cumprir uma visão de salvação através do controle absoluto, o que justamente o corrompe e o leva a se tornar o agente da destruição que ele pretendia evitar. A interpretação literal e fear-driven (guiada pelo medo) da profecia é o que garante seu cumprimento trágico.

 

Em Harry Potter, a profecia sobre a criança que teria o poder de derrotar o Lorde das Trevas não ditava que ela o derrotaria, mas apenas que um dos dois deveria morrer pela mão do outro. É a interpretação obsessiva de Voldemort — sua crença em uma leitura restrita e literal — que o leva a marcar Harry como seu igual e, assim, criar o próprio instrumento de sua ruína. Ele segue a carta da profecia, mas ignora seu espírito, que é sobre o poder do amor e do sacrifício, algo que sua filosofia não pode conceber.

 

Em O Senhor dos Anéis, a presciência é mais sutil, mas igualmente perigosa. Galadriel e Elrond veem fragmentos do futuro em sonhos e espelhos, mas são extremamente cautelosos em sua interpretação, pois sabem que são visões de possibilidades, não de certezas. Já Denethor, o Regente de Gondor, usa a palantír para ver o futuro, mas sua visão é corrompida por Sauron e por seu próprio orgulho e desespero. Ele vê apenas a inevitabilidade da derrota e, interpretando aquela visão enviesada como absoluta, abandona a esperança e se destrói. É um erro clássico de interpretação: tomar a parte pelo todo e o possível pelo certo.

 

Na vida real, o mecanismo é similar, embora menos épico. Quantas vezes não temos um "pressentimento" de que algo vai dar errado em uma apresentação, em uma conversa difícil ou em uma viagem? Nos armamos para o pior, interpretando aquele frio na barriga como uma previsão infalível. E, então, agindo a partir desse medo, tornamos o ambiente tenso, travamos nossa criatura ou distorcemos a situação de tal forma que, por fim, o resultado acaba sendo negativo — não porque era destino, mas porque nossa interpretação e ação, baseadas no medo, o criaram.

 

A ironia suprema é que o pressentimento muitas vezes se cumpre por causa da interpretação equivocada que fizemos dele. Viramos nossos próprios oráculos trágicos. Nesse sentido temos que ter muito cuidado!

 

Portanto, a regra não é que as previsões sempre se invertam, mas que o significado verdadeiro de uma intuição raramente é dado de imediato. Ele exige de nós não certeza, mas humildade; não uma leitura rápida, mas uma escuta atenta de si mesmo e do mundo. O maior antídoto contra a tragédia da interpretação não é a ignorância dos pressentimentos, mas a sabedoria para não confundir o presságio com o fato, o símbolo com a realidade.

 

Descrevo tudo isso para trazer maior clareza, conhecimento e reflexão sobre o que acontece com muita gente no sentido das intuições e nosso comportamento e atitude diante deles.

 

A Profecia das Bruxas em Macbeth

 

Este é o exemplo mais icônico. As bruxas preveem que Macbeth se tornará rei, o que desencadeia toda a tragédia. A profecia é ambígua e leva à sua queda, mostrando que saber o futuro pode ser um tanto desastroso.

 

    "Sê sanguinário, ousado e decidido; ri-te do poder de qualquer homem, pois nenhum que de mulher nasceu poderá causar dano a Macbeth."

    (Atto IV, Cena I)

 

Macbeth recebe essa falsa garantia de invencibilidade, mas a profecia se cumpre de uma forma inesperada (Macduff — oposto fatal de Macbeth— nasceu de uma cesárea, não "de mulher" no sentido literal). Isso mostra a ironia trágica da presciência – o futuro é conhecido, mas mal interpretado.

 

Uma possível conclusão de Shakespeare sobre o tema:

Saber o que vai acontecer não significa que se pode evitá-lo.

A grande lição shakespeariana é que o conhecimento do futuro não confere controle sobre ele; em vez disso, revela a vulnerabilidade humana e a ironia do destino (provavelmente ele era muito grego, no sentido  da tragédia grega). O futuro é inevitável, mas a forma como chegamos a ele é através de NOSSAS PRÓPRIAS ESCOLHAS, medos e erros de interpretação.

 

OBS.: Fazendo um contraponto a Shakespeare, no sentido místico e espiritual ( ou refletido nas circunstâncias), um futuro revelado é futuro que pode ser mudado, ao menos em algum nível.

 

Por isso escolhi o texto de Shakespeare. Além do exemplo de presciência, ele serve como uma analogia perfeita para pensarmos na responsabilidade que temos sobre nossas próprias escolhas, não importa o que aconteça.

 

A partir desse ponto, quero fazer uma transição — PARA NOSSAS ESCOLHAS.  

 

 

E claro, existe também a percepção que temos das escolhas alheias. Muitas vezes, enxergamos com clareza que aquilo vai dar errado — que a pessoa está prestes a quebrar a cara, seja por falta de sustentação para suas decisões, seja por completa ilusão. Essa é uma experiência comum.

 

De certa forma, somos pressionados pelas premissas que nos cercam. Ao fazer uma escolha, raramente temos todos os dados ou uma visão completa do contexto. Por isso, entendemos que errar também faz parte do processo — é uma das nossas prerrogativas humanas. Conforme amadurecemos, tendemos a escolher melhor, mas quantas vezes nos tornamos “oráculos” da vida alheia? Quantas vezes testemunhamos alguém assumir posições que, para nós, estavam fadadas ao fracasso, enquanto o outro não as enxergava?

 

É como se fôssemos uma espécie de Cassandra da mitologia grega: temos a clareza do desfecho, mas não somos ouvidos.

 

Em Macbeth, as bruxas são “Cassandras” ambíguas. Mostram o futuro de forma tão enganosa que Macbeth e sua esposa, movidos por ambição cega, interpretam as profecias como desejam, o que os leva à ruína. Eles tiveram avisos, mas não quiseram vê-los.

 

Shakespeare nos força a confrontar essa verdade:

 

A Ilusão do Controle: Acreditamos que, com uma previsão, tomaríamos melhores decisões. Macbeth mostra o contrário: ter uma previsão pode acelerar nossa queda, já que ambição, medo ou orgulho nos impedem de interpretá-la com clareza.

 

 A Dor de Ver o Outro Quedar: É angustiante ver alguém que amamos ou admiramos tomar um caminho claramente autodestrutivo. Viramos Cassandras modernas. Queremos gritar “não faça!”, mas sabemos que a outra pessoa pode não ter maturidade, experiência ou visão de contexto para ouvir.

 

A Responsabilidade Intransferível: Shakespeare não culpa as bruxas por Macbeth. Culpa Macbeth. A peça é um estudo sobre responsabilidade individual. Profecias podem existir, conselhos podem ser dados — Banquo, por exemplo, desconfia das bruxas —, mas a escolha final de como agir é sempre do indivíduo.

 

É uma lição de humildade e coragem: humildade para admitir que não sabemos tudo, e coragem para, ainda assim, escolher e seguir em frente, arcando com as consequências.

 

Freud nos ajuda a entender que NOSSAS ESCOLHAS não nascem apenas da razão consciente. Muitas vezes, somos guiados por desejos inconscientes, lembranças da infância e pelas pressões da sociedade. Isso significa que nem sempre sabemos exatamente por que fazemos o que fazemos. Ainda assim, isso não diminui nossa responsabilidade — ao contrário, ela aumenta.

 

Quando paramos para refletir sobre nossos atos, buscar autoconhecimento e perceber esses conflitos internos, abrimos espaço para escolher de forma mais livre e madura. Ser responsável, então, não é apenas “arcar com as consequências”, mas também reconhecer que nossos desejos e medos influenciam nossas decisões. É esse olhar mais profundo que nos permite assumir, de verdade, o papel de protagonistas da nossa própria vida.

 

Quando escolhemos um caminho, automaticamente deixamos de lado outros — e junto com essa decisão vêm tanto os ganhos quanto as perdas. Esse é o preço natural de qualquer escolha: abrir mão de uma possibilidade para viver plenamente outra.

 

O problema é que muitas pessoas seguem por uma estrada, mas permanecem olhando para trás, presas ao “e se...” do caminho que não trilharam. Isso gera insatisfação, ressentimento e até paralisia, pois em vez de viverem o presente, ficam ligadas ao que poderia ter sido.

 

Na visão de Jung, isso acontece porque existe em nós algo chamado sombra. A sombra é a parte de nossa personalidade que contém tudo aquilo que não vivemos, que escondemos ou que deixamos de lado — desejos, talentos, impulsos, escolhas não feitas. Quando escolhemos um caminho, inevitavelmente algumas dessas possibilidades ficam guardadas nessa “caixa interna” da sombra.

 

 O problema surge quando não reconhecemos isso: a sombra, então, cobra sua presença através de arrependimentos, fantasias de um “outro eu” e até uma sensação de vazio.

 

Integrar a sombra não significa voltar atrás ou querer viver todos os caminhos ao mesmo tempo, mas sim aceitar que dentro de nós existem partes não escolhidas. Ao reconhecer isso, paramos de fantasiar que o caminho abandonado seria perfeito e conseguimos viver o caminho atual com mais inteireza. A maturidade está justamente em assumir a escolha feita, aceitar os custos, colher os frutos — e, ao mesmo tempo, dar um lugar simbólico àquilo que ficou na sombra, sem deixar que ela governe nossa vida em silêncio.

 

UM OUTRO ASPECTO DE NOSSAS ESCOLHAS

 

Agora um conhecimento universal de qualquer tempo e cultura na história humana:

“SÓ NÓS SABEMOS ONDE O SAPATO APERTA”

 

Entendendo a dor que ninguém vê. Cada pessoa é a única especialista na própria dor. Por mais que tentemos explicar, por mais que os outros queiram entender, ninguém consegue sentir exatamente o que sentimos. Esse conhecimento nos ensina duas lições fundamentais:

 

1. Para nós mesmos: Valide a sua própria dor.

Muitas vezes, nós mesmos duvidamos do que sentimos. Pensamos: "Ah, não devia me sentir assim, tenho uma vida boa" ou "Fulano passou por coisa pior, eu não tenho direito de reclamar".

 

O "sapato que aperta" nos lembra que a sua dor é válida porque é SUA. Não importa se o sapato do outro parece mais velho ou mais sujo. Se o seu está machucando você, a dor é real. Pare de se comparar e permita-se sentir.

 

2. Para os outros: Pratique a empatia de verdade.

Quantas vezes julgamos alguém rapidamente sem saber o que se passa na vida dela? Criticamos uma reação, um mau humor, uma decisão.

 

Esse provérbio é um puxão de orelha gentil: "Cuidado para não julgar a vida alheia pelo sapato que você vê." Em vez de criticar, podemos tentar perguntar com gentileza: "Está tudo bem?", "Precisa de algo?". Às vezes, a melhor ajuda é simplesmente reconhecer que não sabemos pelo que o outro está passando, mas que estamos ali para ouvir.


Conclusão: Um Elo de Humanidade

 

No fundo, a frase "Só nós sabemos onde o sapato aperta" não é sobre solidão, mas sobre humanidade compartilhada. É um lembrete de que todo mundo, sem exceção, carrega um peso que os outros não veem.

 

Se todos levarmos isso a sério, criamos um mundo com menos julgamento e mais acolhimento. Um mundo onde podemos admitir que nosso sapato está apertando sem medo de sermos mal interpretados, e onde podemos oferecer apoio aos outros, sabendo que nunca entenderemos completamente a dor deles, mas que podemos caminhar ao lado mesmo assim.

 

É um dos segredos mais simples e profundos para uma convivência mais gentil.

 

Um pouco mais de literatura para nos ajudar.

“Cada um é como Deus o fez, e ainda muito pior muitas vezes."

Esta fala (frequentemente atribuída a Sancho) reconhece que cada pessoa carrega as suas próprias falhas e dores internas ("ser feito por Deus") e que a vida ainda as complica ("e ainda muito pior"). É um reconhecimento da condição humana única e, por vezes, miserável de cada um.

 

MINHAS OBSERVAÇÕES SOBRE ASTROLOGIA

 

Meu contato com a astrologia é antigo, remonta a mais de trinta e cinco anos. Embora, por períodos, não tenha sido contínuo em termos de estudo e dedicação, ela sempre retornava em momentos cruciais — como uma bússola simbólica, uma curiosidade sobre a temporalidade da vida.

 

Ao longo desses anos, amadureci e aprendi o seguinte de mais essencial:

    Tem o peso de autoconhecimento.

    Não é determinismo, é potencial. O mapa não é uma sentença, mas um campo de possibilidades.

 

    Nem sempre o mapa está ativo. As energias podem permanecer latentes até serem ativadas por trânsitos ou por nossas próprias escolhas.

 

    Tudo que acontece está no mapa, porém, nem tudo que está no mapa acontece. Nossa agência e livre-arbítrio são fatores cruciais.

 

    Aspectos duplos sempre têm um peso maior. Configurações como uma quadratura com um trígono simultâneo criam tensões e soluções complexas, demandando mais integração.

 

    É necessário ter intuição e, ao mesmo tempo, a astrologia treina a intuição. E quando aquela certeza intuitiva surgir durante uma leitura… acredite!

 

    O conhecimento astrológico é vastíssimo. Exige estudo sério, contínuo e humildade para perceber que sempre há mais a aprender.

 

    As predições existem, mas são como a previsão do tempo: indicam tendências e climas, não eventos inevitáveis e inflexíveis.

 

    A Astrologia Kármica é fascinante. Foi minha descoberta mais recente e transformadora.

 

Dois acontecimentos reacenderam meu interesse com intensidade:

 

    6 de abril de 2021: Uma experiência marcante, ligada a uma vida passada, abriu uma nova e profunda perspectiva de autoconhecimento.

 

    13 de maio de 2022: Um outro episódio que pareceu costurar as pontas soltas entre passado e presente, justamente desse 6 de abril de 2021, unindo memórias de outrora aos desafios da vida atual.

 

Foi então que mergulhei de cabeça na Astrologia Kármica. Através dela, percebi padrões impressionantes. A aplicação das condições astrológicas de existências anteriores sobre o mapa natal revelou uma lógica profunda e surpreendente.

 

Era como se a alma, em sua longa jornada, deixasse rastros simbólicos codificados nas estrelas — e o estudo atento pudesse decifrá-los.

 

MAIS UM ADENDO

 

Gente, vou aproveitar o momento para trazer uma definição de certos aspectos da psique (essa é uma dúvida que me perguntam muito, principalmente pacientes). Vou explicar cada um (na verdade a IA) e, depois, acrescentar minha experiência pessoal sobre esses fenômenos.

 

1. Intuição

 

Definição: É uma forma de conhecimento imediato, que não passa pelo raciocínio lógico nem pela análise consciente. Surge como uma percepção súbita, um “saber sem saber explicar como”.

 

Característica: Carrega uma sensação de certeza íntima, quase como um reconhecimento interno.

 

Exemplo: Sentir que não deve entrar em um determinado lugar, sem motivo lógico aparente, e depois descobrir que ali realmente ocorreu algo perigoso.

 

Minha observação: Na maioria das vezes, a sensação surge como algo um tanto desconfortável, quase uma intrusão no pensamento — mesmo quando se refere a algo positivo. Pode aparecer de forma sutil, fragmentada ou incompleta, sem qualquer aura de mistério, destino ou significado maior na existência. Ainda assim, pode desempenhar um papel importante, ajudando o indivíduo a se proteger ou a evitar uma situação perigosa ou desagradável.

 

2. Insight

 

Definição: É um momento de clareza súbita ou compreensão repentina sobre algo que antes estava confuso ou obscuro. Geralmente resulta de um processo inconsciente de elaboração.

 

Característica: Manifesta-se como a clássica sensação de “uma lâmpada acendeu” — a resposta ou solução aparece inteira, de repente, sem esforço consciente.

 

Exemplo: Estar tentando resolver um problema complexo e, de repente, perceber a solução de forma clara.

 

Minha observação:  Nesses casos, trata-se de um pensamento que busca a resolução de algo — pode ser um problema simples ou uma questão mais complexa, interna ou externa. Muitas vezes, a pessoa já está saturada pela preocupação, tomada pela necessidade constante de encontrar uma saída, e parece não haver solução possível. Então, de repente, ao relaxar — às vezes nos momentos mais inesperados — a resposta surge na mente, clara e espontânea. Pode vir como uma solução única, ou até mesmo como várias alternativas, apresentando-se de uma só vez, de forma repentina.

 

3. Fantasia

 

Definição: É a criação de imagens, histórias, cenários e ideias sem compromisso direto com a realidade. Pode ter um lado construtivo (como na arte, na invenção ou no planejamento) ou um lado ilusório (como fuga ou distorção da realidade).

 

Característica: É alimentada pela imaginação, podendo tanto abrir caminhos criativos quanto confundir e mascarar percepções.

 

Exemplo: Imaginar-se vivendo em outro tempo ou lugar, inventar narrativas, ou sonhar acordado com um futuro idealizado.

Minha observação: Considero a questão da fantasia uma das mais perigosas, sobretudo no sentido da frustração. Isso porque, quando alguém fantasia algo, normalmente é algo doce, atraente, quase encantador — mas sem lastro na realidade. Muitas vezes, a pessoa começa a imaginar e acreditar em algo que ela própria não tem condições internas de sustentar como verdade, nem recursos externos para concretizar.

 

Há nisso uma certa inocência, uma dificuldade em perceber tanto a própria capacidade quanto o que o entorno realmente oferece — ou mesmo o que o outro de fato está oferecendo (e, muitas vezes, não está oferecendo nada).

 

A fantasia costuma vir acompanhada desse sabor doce que seduz, envolvendo a pessoa numa espécie de encantamento. Porém, quando a realidade se impõe, a decepção pode ser devastadora: quebra de expectativas, perda de sentido e, em alguns casos, até estados depressivos, já que a fantasia funcionava como fuga.

 

No entanto, quando a pessoa consegue reconhecer que aquilo é apenas fantasia — e não uma verdade a ser vivida —, o processo pode ser criativo e enriquecedor. Nesse caso, ela degusta a imaginação como exercício criativo, amplia horizontes internos e evita a frustração, pois sabe diferenciar a invenção da realidade. Assim, a fantasia deixa de ser uma armadilha e se transforma em recurso de criação.

 

4. Racionalização

 

Definição: É um mecanismo de defesa psíquico no qual a pessoa cria justificativas lógicas e aparentemente razoáveis para comportamentos, sentimentos ou situações que, na verdade, têm outra origem emocional.

 

Característica: A lógica funciona como uma máscara para encobrir emoções, desejos ou medos que não são aceitos conscientemente.

 

Exemplo: Alguém que não conseguiu um emprego afirma: “Na verdade eu nem queria esse trabalho, era muito chato”, quando, no fundo, sente frustração e insegurança.

 

Minha observação: A racionalização também pode ser entendida como uma forma de fuga, mas ela atua pelo caminho oposto ao da fantasia. Enquanto a fantasia se afasta da realidade pela criação imaginativa, a racionalização busca se apoiar em argumentos lógicos e explicações coerentes para evitar o contato direto com fragilidades, desejos ocultos, medos ou inseguranças.

 

Nesse sentido, funciona como um mecanismo de defesa psíquico: oferece ao indivíduo uma narrativa aceitável e aparentemente racional, que encobre conteúdos mais difíceis de admitir. É como “varrer a sujeira para debaixo do tapete”: aparentemente resolve, mas na verdade apenas esconde. Mais cedo ou mais tarde, como diria Freud, as forças inconscientes acabam cobrando esse preço — e o recalque retorna.

 

Há sempre um peso árido nesse processo, pois a racionalização alimenta a ilusão de controle. Dá a sensação de que estamos no comando, quando, na realidade, não estamos. O controle — sobretudo da vida interna — é muito mais limitado do que gostamos de acreditar. O que de fato temos não é o controle absoluto, mas sim a capacidade de mediar entre forças racionais e irracionais, elaborando um equilíbrio possível.

 

Nietzsche descrevia essa tensão entre o apolíneo (ordem, clareza, forma) e o dionisíaco (instinto, caos, intensidade). A vida psíquica também pede esse centro: um lugar de aceitação do irracional, sem abrir mão da racionalidade, mas sem se escravizar a ela.

 

Quando usada em excesso, a racionalização deixa de ser um recurso saudável e se transforma numa resistência à própria dinâmica da vida, aprisionando o indivíduo numa falsa sensação de controle e, paradoxalmente, conduzindo-o ao descontrole.

 

 

ENFIM, MINHA JORNADA INTERIOR

 

Minha jornada começou no dia 2 de agosto, na rodoviária de Gramado. Eu estava sentado em um banco, aguardando o ônibus e refletindo sobre o que teria de enfrentar. O desafio maior era não me deixar dominar pela ansiedade, que insistia em acelerar o tempo dentro de mim, como se eu pudesse forçar os acontecimentos a passar logo.

Então me disse: “Não posso desejar que toda experiência seja boa e agradável. As coisas devem seguir seu curso natural. E nada de apressar o tempo.” E fui firmando esse compromisso comigo mesmo.

 

Sempre costumo repetir que, em geral, tudo tende a dar certo; mas é inevitável que, em algum momento, algo saia do controle. E é justamente aí que precisamos estar preparados para não sucumbir. Era isso que ocupava minha mente: fazer o melhor possível, evitar que a ansiedade me paralisasse e não me deixar abater por experiências desagradáveis ou inesperadas que certamente surgiriam pelo caminho.

 

Cheguei a pensar que poderia viver algo próximo a uma tragédia grega, com toda a sua carga de destino implacável. Mas logo recusei esse papel. Lembrei-me do meu livro Surya Mahadeva e, junto dele, o conhecimento sobre o budismo que me acompanha desde a juventude. O ciclo do Samsara — essa roda incessante em que ora estamos bem, ora mal, muitas vezes no mesmo dia — me recordava a impermanência da vida.

 

O Buda nos ensina: “A dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional.” Essa frase sempre me traz serenidade, porque aponta para a aceitação do presente sem necessidade de resistência.

 

E aqui cabe uma confissão: desde o ano passado, finalmente tomei vergonha na cara e comecei a estudar filosofia de forma mais sistemática. Esse passo fez toda diferença. Ao me aprofundar, percebi como o pensamento estoico dialoga com o budismo. Ambos ensinam que não temos controle sobre os fatos externos, apenas sobre nossas reações a eles, convidando-nos a viver o aqui e agora com equilíbrio.

 

Ainda assim, há diferenças importantes: o estoico valoriza a virtude como guia da vida e busca a serenidade pela razão; já o budismo aponta para o desapego e para a compaixão, reduzindo o sofrimento pela dissolução do ego e pelo cultivo da atenção plena.

 

Esses pensamentos me acalmaram. Entre o desapego budista e a disciplina estoica, encontrei uma espécie de centro. Assim, iniciei minha jornada mais sereno, preparado para acolher tanto as alegrias quanto as turbulências que viriam, sem fugir delas, mas também sem me deixar escravizar por elas.

 

 

O UBER - Um surfista profissional

 

Há algo em aeroportos e aviões que me fascina e, por incrível que pareça, me relaxa tal ambiente — um contraste total com a ansiedade que esse ambiente causa em tantas pessoas.

 

Saí de Porto Alegre e desembarquei em Salvador ainda de madrugada, no domingo, dia 3. Minha mente já estava projetando os próximos passos: eu mesmo comprei pelo aplicativo a passagem para o interior, ansioso por chegar no dia 4 à minha cidade natal.

 

Enquanto o Uber trafegava pela avenida paralela, bastante larga, eu estava imerso em meus planos e preocupações. Aos poucos, percebi a escuridão da noite salpicada pelo brilho das luzes públicas — um mix de tons amarelos, brancos e azulados. Cada detalhe daquele caminho me era familiar, uma geografia íntima dos anos em que vivi em Salvador.

 

Chamou minha atenção a seleção musical do motorista — um agradável repertório dos anos 70, 80 e 90. Quando eu a elogiei, ele começou a compartilhar sua história. Era surfista profissional. Notei então os cabelos descoloridos, oxigenados, as pulseiras no pulso, o chaveiro temático. Mesmo com problemas sérios na coluna, contou que havia tomado injeções de Profenid para competir em uma bateria recente de um campeonato  — um testemunho de sua paixão.

 

Perguntou minha origem. “Porto Alegre”, respondi. Então, ele mergulhou em sua filosofia: falou sobre a busca por uma mente tranquila, a escolha consciente de não se estressar com o externo, a rejeição às baladas em favor de uma paz interior. Sua fala era sobre valorizar o ritmo da vida, o que ela tem de essencial. Sem ansiedade.

“Somos feitos da mesma água que nos carrega. O mar ensina a humildade: ninguém controla a onda.”

 

Revelou ainda que o médico lhe recomendara aposentadoria do surfe, e ele via aquilo não como uma derrota, mas como um conselho sábio. “O médico não é apenas um especialista; é um conselheiro também”, refletiu.

 

Em certo momento, minha vista suspendeu-se na paisagem: um novo prédio da Receita Federal, austero e completamente às escuras, erguia-se como uma silhueta monstruosa, um monstro Nessie urbano pairando na noite. Foi quando ele comentou sobre a inquietude da nossa geração, tão diferente da serenidade que ele cultivava.

 

Ele então citou uma “certa deseducação”, termo que atribuiu a Caetano Veloso, para definir como as pessoas parecem ter perdido a educação e a fineza no trato. Disse sentir muita estranheza em relação ao mundo de hoje. Em sua opinião, talvez o preconceito contra os surfistas não seja mais tão forte como antes, mas, em contrapartida, a educação em geral piorou sensivelmente.

 

Aquele breve encontro marcou-me: a trilha sonora perfeita, a paisagem noturna deslizando pela janela, a filosofia de vida em movimento. Tudo se fundiu em uma corrida inesperadamente rica, repleta de insights sobre resistência, paz e desapego.

 

Ouvi tudo em silêncio, absorvendo cada palavra sem revelar minha profissão — permitindo que aquele momento fosse apenas sobre ele, sua história e o que ela me ensinava.

 

Assim como Shakespeare falava do tempo como senhor de tudo, o surfista sabe que cada onda é única — passa e não volta.

 

Uma outra vez, um  surfista  me disse mais ou menos o seguinte:

 

O equilíbrio está em aceitar o imprevisível. E surfar, cara, é se entregar a isso!

 

 

O BABEIRO DO MEU PAI — OS FILHOS

 

Em certo momento, eu caminhava sob um certo calor, algo desacostumado — aquele calor típico da Bahia — e sentia uma certa agonia, não porque meu cabelo estivesse muito longo, mas por causa do abafamento. Ao passar por uma barbearia com ar-condicionado, pensei: “Vou cortar o cabelo, me refrescar e, enquanto isso, planejo os próximos passos”. Entrei e aguardei, refletindo sobre a vida e a situação pela qual passava.

 

Quando finalmente me sentei para cortar o cabelo, após alguma espera, o barbeiro me surpreendeu com uma pergunta: “Você é filho de Maquiba?” (apelido do meu pai, que era praticamente o nome, e significava danado, travesso, corajoso, inquieto, atentado). Respondi que sim, e ele então lembrou-se de mim: era o filho barbeiro do meu pai. Eu também costumava cortar o cabelo com o pai dele, que tinha uma barbearia em outro lugar — um estabelecimento sem ar-condicionado e várias portas, do qual eu guardava boas memórias.

 

Naquele instante, veio à minha mente uma frase que meu pai sempre repetia: “Se a morte é um descanso, eu prefiro viver cansado!”. E então o barbeiro comentou que seu próprio pai havia falecido uma semana antes do meu — daí se lembrar tão bem dele e ter me reconhecido pela semelhança. (É curioso como, embora eu não volte frequentemente à minha cidade natal, Itapetinga, me reconheceu)

 

Ele seguiu compartilhando sua história: contou que seguiu a profissão do pai, mas que as preocupações de hoje são muito diferentes. Enquanto o pai se preocupava apenas em trazer comida para casa, vivendo tempos mais simples — ainda que envelhecido precocemente pela labuta —, ele agora, como barbeiro, precisa lidar com muitas outras coisas: alimentação, escola dos filhos, plano de saúde, celular, vestuário…

 

O pai, segundo ele, era mais tranquilo diante da vida, enquanto ele próprio lutava contra a ansiedade e buscava dar conta de toda a realidade, embora sua aparência era muito mais nova do que o pai naquela geração.

 

Fiquei pensando naquilo — e na frase do meu pai, mais uma vez, até porque no dia estava cansado (foi de longe, umas das frases que mais escutei ele falar. Mas havia outras).

 

A relação entre a frase “Se a morte é um descanso, eu prefiro viver cansado!” e a filosofia de Friedrich Nietzsche era muito forte e direta. Pensei, “que frase mais nietzschiana!”

 

Na verdade, a frase passou a soar como um resumo perfeito de vários pilares do pensamento nietzschiano.

 

Vamos destrinchar como essa ideia dialoga com os conceitos de Nietzsche (claro, aqui é uma liberalidade minha para desnovelar essa frase, não uma verdade exata, até porque é como a entendo hoje. E hoje que digo, é exatamente hoje. No tempo do meu pai não pensava sobre isso. Portanto, cabe recurso e contraditório):

1. Amor Fati (Amor ao Destino)

 

Esta é talvez a conexão mais direta. Amor fati é a aceitação radical e amorosa de tudo que a vida traz, o sofrimento, a luta e a dor. A frase encapsula perfeitamente esse espírito: em vez de desejar a paz eterna da morte (a negação da vida), prefere-se abraçar o cansaço, a fadiga e o esforço que são inerentes a uma vida vivida com intensidade.

 

Para Nietzsche, dizer "sim" à vida em sua totalidade é a marca de um espírito superior.

 

2. A Vontade de Poder 

 

A "Vontade de Poder" não é sobre dominar os outros, mas sobre superar a si mesmo, expandir suas forças e crescer constantemente. Esse processo é intrinsecamente cansativo e desgastante. Envolve lutar, criar, destruir velhas verdades e construir novas.

 

A frase celebra esse cansaço como um subproduto necessário da vontade de poder em ação. Quem prefere viver cansado é porque está constantemente se superando, e esse é o estado desejado para Nietzsche.

3. O "Super-Homem" (Übermensch)

 

O Übermensch é aquele que transcende os valores comuns, que cria seus próprios valores e afirma a vida terrena em vez de esperar por uma recompensa em um outro mundo (ideia que Nietzsche associava ao cristianismo e ao platonismo).

 

A frase é uma declaração ultra-humana: ela rejeita a ideia da morte como "prêmio" ou "descanso merecido" (um conceito muitas vezes religioso) e prefere a luta da existência. O cansaço é, portanto, um sinal de que se está vivendo no nível mais alto possível.

4. A Crítica ao Nihilismo e ao Ascetismo

 

Nietzsche criticava ferozmente a mentalidade ascética (que nega os prazeres e a vida em favor de uma recompensa espiritual) e o niilismo (a descrença em qualquer valor ou significado).

 

A frase "eu prefiro viver cansado" é um antídoto direto ao niilismo. É uma afirmação de valor e significado na própria luta. Ela diz: "Mesmo que a vida seja difícil e cansativa, ela ainda é preferível à não-existência. O cansaço em si tem valor."

 

No fim, parece que sempre vivemos a tensão entre realidade e ilusão, entre destino e liberdade, entre o humano que sonha e o humano que sofre. Acredito que a vida se espelha e se encontra onde caminhamos com nossa alma.

 

Esses dias na clínica, uma jovem paciente me fez a seguinte pergunta (dentro de certo contexto, mas não dá para falar o contexto todo):

“Procuro um sentindo, mas faz sentido eu procurar um sentido, que parece não ter sentido para muita gente?”

E lhe  devolvi com uma pergunta: devemos nos conformar com o que é “real” ou ousar descobrir um sentido maior para a vida, mesmo correndo o risco do ridículo ou de não entendimento do outro, do mundo?

Ficou pensativa e respondeu:

“Os dois, eu acho!”

Respondi mais ou menos isso:

“Acredito que, ao deixarmos de lado a mediocridade e a resignação, e não nos permitirmos ficar paralisados — muitas vezes dilacerados entre a dúvida e a ação — tudo encontra o seu curso certo. Ou seja, entre a dúvida e a ação, escolha agir — é aí que a vida anda pra frente. E vai fazendo os ajustes necessários. Agir não definição é processo.”

 

UM CERTO EXU-MIRIM

Saí de casa para espairecer na rua. O dia estava ensolarado, e minha rua, que é a mais larga da cidade, agora têm árvores plantadas no centro. Caminhava bem pensativo, com a cabeça baixa, quando, de repente, ouvi uma voz que vinha do meio da rua. Alguém chamou: "Carlinhos!"

 

Imediatamente, soube que era alguém da minha infância. Mal levantei os olhos e vi um sujeito de estatura mediana, moreno — com cabelos negros, com alguns fios que pareciam dourados — parado no meio da rua, perto de uma encruzilhada que ficava logo adiante. Por um instante, pensei: "Parece uma espécie de  Exu, mas não é… e se for, é mirim?" Ri com meu próprio pensamento,

 

E ele disse novamente: "Carlinhos, não se lembra mais de mim, né?"

 

Olhei para ele e senti aquela sensação de saber e não saber ao mesmo tempo, de reconhecer sem conseguir nomear. Enquanto eu ainda processava, veio a rua de minha infância. E ele disse: “Faz muito tempo!” — e eu, de pronto, exclamei: "Você é o Pepe!"

 

Ele confirmou: "Sim, era eu aquele menino brigão que te protegia. Lembra? Se alguém tentasse fazer mal a você, eu já socava. Ninguém mexia com o Carlinhos por aqui."

 

Sim, eu já havia me lembrando de tudo. Na época da minha infância, sempre havia meninos mais velhos, “os donos da rua”, e o Pepe era justamente aquele que me protegia gratuitamente. Todos tinham medo dele nas redondezas — era corajoso, danado, um verdadeiro guardião das pelejas da minha infância.

 

Reviver essa memória me fez refletir sobre como temos protetores ao longo da vida. Há quem acredite no anjo da guarda. Minha visão espiritual é bastante ampla nesse sentido, mas acredito que, tenhamos ou não uma espiritualidade, sempre há algo — ou alguém — ao nosso lado.

 

Costumo dizer que procuro não sobrecarregar meu anjo da guarda. Peço que ele me ajude apenas nos momentos realmente necessários. Brinco até que ele deve ter três meses férias por ano, trabalhar quatro dias na semana, e ter bônus anual muito auspicioso… E sempre digo: "Não resolva tudo por mim — deixe que eu me vire. Apareça só quando eu realmente precisar de uma ajuda séria."

 

E foi essa a reflexão que me veio naquele momento: a ideia de proteção, de que sempre há alguém olhando pela gente, mesmo quando menos esperamos.

 

Quando li Dom Quixote de Cervantes, sempre vi Sancho Pança  como uma espécie de anjo da guarda. Era o equilíbrio prático de Dom Quixote. Enquanto o cavaleiro sonha, Sancho age no mundo real, protegendo-o fisicamente dos perigos que sua loucura provoca. Sua lealdade não é cega: ele sabe quando intervir para guiar moralmente o amo e quando deve apenas acompanhá-lo, funcionando como a âncora que impede Quixote de se perder completamente em sua própria fantasia.

 

Em essência, Sancho é a âncora que mantém Dom Quixote ligado à realidade, enquanto permite que seus sonhos existam, garantindo sua segurança e bem-estar tanto no plano físico quanto no emocional. 

Quantas vezes somos “Sanchos” na vida de alguém ou o contrário.

 

UM TIO POSTIÇO DE OCASIÃO — um certo tio Demir

 

Fui certo dia resolver questões imobiliárias e me indicaram uma corretora na cidade. Chegando lá, falei com a secretária: o corretor responsável, um tal de tio Demir, não estava. Expliquei minha situação, mas a moça insistiu que só ele poderia me atender. Pediu que eu esperasse.

 

Não fiquei muito satisfeito. Na minha condição, o tempo era precioso. Ainda assim, sentei-me. Poderia ter colocado um vídeo no celular, alguma palestra para preencher a espera, mas preferi pensar em algo filosófico. Lembrei-me de Epicuro, que falava do tempo de uma forma curiosa: pensamos muito no tempo futuro, mas quase nunca no tempo que veio antes de nós — aquele vasto e incomensurável silêncio anterior ao nosso nascimento. Aquilo me levou a refletir sobre o tempo da espera, essa angústia universal que ninguém aprecia.

 

Estava absorto nesses pensamentos quando surgiu um sujeito peculiar: camisa vinho listrada, berrante como a de um Coringa de ocasião. Havia nele algo da carta do Louco do Tarô (no bom sentido, diga-se) — quase um guardião de algum portal enigmático. Um senhor de idade, já com poucos cabelos, abdômen avantajado, correntes no pescoço. Parou na soleira da porta, olhou para mim e depois para a frente, recuou um pouco na soleira da porta e disparou sem cerimônia:

 

— Veio pagar ou receber?

Respondi na lata, sem saber de quem se tratava:

— Nem um, nem outro. Vim conversar, talvez mais ouvir. Quem sabe fazer negócio, se nossos santos baterem.

Ele riu e entrou. Voltou-se e disse:

— Você está na espera, né?

— Sim, estou aguardando meu tio... que na verdade não sabia que existia e, de fato, nem o conheço — nessa fala já deduzindo que ele era o tal tio Demir.

— Então venha, sou eu mesmo. Não há outra pessoa. Pode entrar — ele ria— Você é uma figura!

 

Segui-o até o escritório. Lá, expliquei meu caso e, num tom descontraído, perguntei se poderia chamá-lo mesmo de tio Demir. Ele respondeu:

— Claro! Tenho idade para ser seu pai, rapaz — disse num tom que não deixava margem para dúvidas

Não retruquei. Não era uma verdade inteira, mas me pareceu muito boa na hora. Assim, deixei que essa pequena lenda urbana se perpetuasse pela cidade. Afinal não ia fazer mal a ninguém.

Nesse instante, elogiei sua secretária. Ela pareceu surpresa e agradecida — talvez não recebesse muitos elogios. Tio Demir confirmou:

— Sim, ela é ótima. Não é à toa que está comigo há mais de dez anos.

E assim foi: eu, que não estava ali nem para pagar nem para receber, mas apenas para conversar e resolver pendências, vivi aquela cena. A vida, com sua ironia, sempre nos coloca em palcos inesperados, onde o ordinário se mistura ao cômico, ao filosófico, ao artístico.

 

Ficou essa experiência — quase anedótica — de ter encontrado um tio postiço de ocasião, como a dizer, por vezes, só estamos vivendo mesmo nesse estranho palco da vida com  leveza e disposição.

Mas vamos fazer algumas análises, dentro da literatura.

Na obra de Shakespeare, o tempo é quase um personagem, ele  coloca o aqui e agora como um palco em que os homens, “meros atores”, atuam. O presente é cena, performance, e nele está o sentido da existência. Mas em outras passagens, o tempo não é apenas decadência: é também presente intenso, um convite a viver o instante, já que o futuro é incerto e a memória é falha.

 

Em Cervantes, o tempo é humorado e ambíguo: o mesmo presente pode ser sublime ou ridículo, dependendo de quem olha.

Dom Quixote vive no “aqui e agora”, mas como se fosse em outro tempo — o passado dos livros de cavalaria.

 

A sua luta contra moinhos, o diálogo com Sancho, tudo mostra a tensão entre o tempo real (o do mundo objetivo, prático) e o tempo vivido (o da imaginação e da memória literária).

 

Para Quixote, o instante presente é oportunidade de transformar a banalidade em epopeia; para Sancho, é sempre o “aqui e agora” pragmático, da fome, da estrada, da vida concreta.

 

 

 

Uma Experiência em um Abrigo de Idosos em Itororó

 

Naquela viagem, eu precisava tomar uma decisão importante: encontrar um abrigo adequado para minha mãe. Como não havia vagas na minha cidade até aquele momento, resolvi procurar nas cidades vizinhas.

 

Naquele mesmo dia, outro compromisso não deu certo, e aproveitei a ocasião para visitar um abrigo em Itororó — uma cidade próxima onde eu não punha os pés havia décadas. Foi curioso: logo ao chegar, deparei-me com a praça da feira, o mesmo local onde, ainda criança, estive com uma tia (nossa vizinha de frente) para vender algumas mercadorias de seu pequeno comércio. A cidade estava transformada, mas aquele espaço reacendeu memórias antigas.

 

Estranhamente, meu celular não funcionava; havia sinal, mas não completava ligações nem conectava à internet. Quase guiado por lembranças e pela ajuda de pessoas locais, acabei encontrando o abrigo. Fui recebido de maneira calorosa pelas coordenadoras, a quem agradeço até hoje pela delicadeza e pelo acolhimento. Percebi logo que aquele seria um lugar muito especial para minha mãe: havia uma devoção Mariana, tão presente na vida dela, que se refletia na atmosfera do local.

 

Visitei todos os internos, sem exceção. Fiz questão de olhar para cada um, como quem presta uma homenagem silenciosa à vida que ainda pulsa e ao próprio envelhecer, mesmo no entardecer da existência. Havia ali um rito de passagem coletivo — em alguns, o corpo já dava sinais de despedida.

 

O abrigo em si era acolhedor: tinha árvores enormes nos fundos (que não lhe pertencia necessariamente), uma pracinha agradável ao centro e um ar de aldeia. Senti gratidão pela existência de instituições como aquela — conheço histórias e culturas relacionadas ao idoso que não vou relatar aqui, de arrepiar os cabelos.

Estás instituições, não porque sejam perfeitas, tampouco porque transformem a realidade de modo absoluto, pois muitas vezes fazem apenas o que é possível. Agradeci simplesmente porque existem, porque estão ali, sustentando algo dentro do que a vida permite.

 

Foi, mais uma vez, um agradecimento à vida, à existência e ao mistério maior. Estar naquele espaço, naquele tempo, com aquelas pessoas — coordenadoras e usuários — foi como partilhar de uma certa humanidade essencial.

 

No fundo, tudo aquilo um dia desaparecerá. Todos desapareceremos. A impermanência é a lei do jogo da vida — e é justamente ela que nos ensina a valorizar o tempo que nos é dado. Era como se eu estivesse dentro de um relógio humano, no “horizonte de eventos de um buraco negro”, onde o tempo engole a si mesmo. Ali era passado, presente e futuro convivendo.

 

Cheguei ali sem planejamento, levado por uma contingência pessoal. E, estando lá, mergulhei em reflexão. Gostei da experiência, pois serviu ao meu próprio entendimento, fortalecendo convicções internas sobre o envelhecimento. Sentei-me num banco de alvenaria e deixei que essas ideias me invadissem.

 

Comecei a pensar na velhice, na passagem do tempo e no peso daquela responsabilidade. Fiz a mim mesmo uma pergunta essencial: se eu estivesse muito idoso e fragilizado, escolheria ficar ali? A resposta veio simples, rápida e verdadeira: sim. E, com ela, um sentimento de pertencimento. Gratidão porque, mesmo em decadência física, haveria alguém para cuidar — oferecer alimento, limpar, dar banho, ajudar a tomar sol.

 

Essa resposta me trouxe alívio. Envelhecer não é apenas aguardar a decadência, mas também preparação, trabalho interior, lapidação. A velhice não deve ser apenas suportada — deve ser construída. E isso não se limita ao físico: exige exercício da mente, do espírito, da energia, da psique. É um trabalho alquímico sobre nós mesmos, a verdadeira obra que fazemos em vida esse elixir — a construção enquanto sujeitos de nossas história e vida.

 

Foi então que uma das coordenadoras se aproximou, sentou-se ao meu lado e disse:

— Carlos, você chegou aqui tão convicto, tão firme… e agora parece em dúvida.

 

Respondi que não era exatamente dúvida. O que havia em mim eram pensamentos e reflexões — não cheguei a explicitar tudo, mas já naquele momento eu pensava muito na minha mãe. O que seria para ela aquela realidade? Para mim, era uma experiência, uma decisão; para ela, seria outra, muito diferente talvez. Entrei num fluxo de pensamento: o que é para o outro? O que significa para o outro?

Contei à coordenadora que refletia sobre como seria para minha mãe viver aquilo que, para mim, já fazia sentido.

 

Enquanto escrevia este texto, deparei-me com uma fala muito pertinente de Leandro Karnal sobre o envelhecer. Colocarei aqui um resumo, mas recomendo buscar na web o conteúdo integral. Ele menciona, inclusive, que espera não se tornar teimoso com o avançar da idade.

 

Aos 62 anos, Karnal entende a velhice não como um fim, mas como continuidade da vida. Para ele, envelhecer é uma questão de perspectiva: pode ser a “juventude da velhice” ou a “velhice da juventude”, resultado das escolhas e experiências acumuladas. Ele defende a necessidade de reinventar-se e criar novos hábitos, superando a acomodação natural do cérebro. O medo da velhice, ligado ao medo da morte, deve ser substituído por uma vida plena, já que a morte só acontece uma vez. Assim, a velhice é parte do processo contínuo da existência e reflete a forma como cada um viveu. Karnal critica tanto a negação do tempo quanto a busca por uma juventude artificial, reforçando a importância de viver o presente com propósito e autenticidade.

 

Por tudo isso, saí de lá grato. Agradeci às coordenadoras, aos internos, à própria vida.

Ao sair, já na rua, encontrei a outra coordenadora, que me disse:

— Carlos, não se sinta culpado.

 

Sorri. Não era culpa o que eu sentia, mas gratidão: pelo acolhimento, pela escuta e pela oportunidade de refletir sobre minha mãe, sobre mim, sobre o envelhecer, sobre o tempo. De toda sorte, foi bom escutar aquilo... obrigado!

Decidi que, apesar de ter apreciado muito o abrigo de Itororó, faria de tudo para que ela ficasse em Itapetinga, mais próxima, onde as visitas seriam mais fáceis. E assim tracei meu caminho, certo de que, dentro dos limites possíveis, eu buscava o melhor.

 

Gente, não posso deixar de chamar meus dois convidados para uma troca de ideia.

 

Em Shakespeare, como já disse mais acima, neste texto, o tempo aparece como um ator no palco, devorador e inevitável, mas também mestre do instante: “Somos feitos da mesma matéria que os sonhos, e nossa vida pequena é cercada pelo sono.” Assim como naquela visita, percebi a fragilidade da existência e, ao mesmo tempo, a beleza de estar presente.

 

Em Cervantes, Dom Quixote, como já disse anteriormente, ele  transforma o ordinário em épico, vive o agora como se fosse aventura. No abrigo, procurei algo semelhante: cada idoso carregava sua própria epopeia, cada rosto era uma narrativa que, mesmo no crepúsculo da vida, mantinha uma centelha de história.

Qual era a história de cada um ali? Para onde essas histórias iriam?

 

 

UM DIA IRMA DULCE

 

Eu estava sob uma pressão enorme devido às minhas responsabilidades e dificuldades. Tudo parecia mais complicado porque eu precisava voltar urgentemente para Gramado. A situação era grave: minha esposa, que tem um problema cardíaco muito sério e da qual sou cuidador, passou mal e ficou desacordada por um longo período. Foi um momento de extremo perigo, literalmente de vida ou morte, e eu ainda tinha que resolver outras situações urgentes na minha cidade.

Em algum momento comecei a ver a imagem da Irmã Dulce de forma repetida e intrigante. A primeira vez foi em casa, num pequeno bloco de anotações. Depois, vi na rua em um  panfleto. Em seguida, apareceu no celular. E, por fim, uma quarta imagem. Eu pensei: "Isso é muita coincidência. Deve ter um significado".

 

Eu sempre admirei muito a figura da Irmã Dulce. Independente de religião, pouco me importava na verdade, (também na mística do Candomblé, embora não seja participante, como eu, ela tem como orixá de frente, Exu) , ela sempre foi uma pessoa de verdade, do tipo que faz o bem sem olhar a quem. Esse sempre foi um valor que admirei nela.

 

O fato que aquele "enigma" ficou na minha mente: o que aquilo queria dizer?

 

Então, me veio a ideia de ver a data de sua santificação. Descobri que era em agosto, justamente no dia 13 ( e os trezes vem tem verdadeiros significados de uns anos para cá). E eu estava vivendo aquilo dois ou três dias antes daquela data. Na hora, veio uma certa certeza interior: a solução para o meu problema iria se dar naquele dia.

 

E, de fato, no dia 13 de agosto, a situação se resolveu. Minha mãe foi admitida no abrigo de Itapetinga, aliviando uma grande parte da minha pressão. Cheguei a comentar essa história com a diretora do local, a quem sou muito agradecido por ter acolhido e a minha história e o meu momento. Obrigado!

 


O RETORNO A GRAMADO - UMA CELEBRAÇÃO À CIDADE

Mesmo muito cansado, física e emocionalmente — a ponto de a voz quase me abandonar, fosse por um resfriado, fosse pelo peso silencioso do desgaste —, acabei reencontrando, no coração da serra, um remédio já conhecido. Pouco tempo depois, sentia-me renovado.

Foi essa sintonia fina, esse sussurro de cidade, esse pulsar ritmado com Gramado que me realimentou e me ajudou a reencontrar meu próprio compasso.

Meu retorno a Gramado reacendeu certas luzes dentro de mim em pleno inverno. Percebi, então, o quanto sou grato por estar aqui. Esta cidade é como uma musa: natureza exuberante, movimento elegante, estética sofisticada, uma aliança profunda com as culturas alemã e italiana, e o burburinho constante de um cosmopolitismo singular. Tudo isso, temperado pela diversidade gaúcha e pela força de sua própria história.

Um dia, enquanto vinha do meu trabalho. Era noite, fazia um frio intenso. Caminhava pela Avenida Borges de Medeiros, passei pelo Palácio dos Festivais em frente à Rua Coberta. Naquele momento, desmontavam as estruturas e os palanques do festival de cinema. Olhei tudo aquilo ainda impregnado da energia do evento que fazia seu último ato.

 

O frio tinha o cheiro da montanha — era adorável. Caminhava rápido, como gosto de fazer, sentindo meu coração pulsar, a força da saúde, respirando fundo o ar bom de Gramado. Era um lugar onde eu gostaria de estar... e eu estava. E isso era muito bom.  

 

Tive uma vislumbre sobre as coisas boas, sobre uma força inspiradora que emana de Gramado e da cultura gaúcha. Sempre carrego comigo a tendência de aprender com tudo. Minha sensibilidade artística, como diria Shakespeare, “corre na frente”.

 

Minha jornada como escritor me concedeu a chave para dimensões paralelas de Gramado. Já atravessei o portal e pisei na Gramado Mítica, onde a magia é o único mapa; na Gramado Natal-Luz, um universo próprio de pura luminescência; na Gramado Terra e Lar, de raízes profundas e afeto gaúcho; e na Gramado Universal, palco de sonhos que transcendem geografia. É Gramado Portal, Gramado Sonho, é gente calorosa que tece a sua alma única. É Gramado Vida pulsante na natureza, Gramado Trabalho e perseverança, Gramado Singularidade sempre se reinventando. Acima de tudo, é um Palco de Histórias. E, de todas, algumas são minhas.

 

E foi envolto por esse frio substantivo — tão característico, tão desejado, tão bom — que a semente de uma dessas histórias germinou novamente em mim. A saga do Anjo e do Alquimista, que concebi como uma tetralogia, clamou por atenção. Um de seus volumes, talvez o segundo, talvez o terceiro, terá sua alma inextricavelmente ligada a estas ruas, a este clima, a esta luz. Este retorno físico a Gramado foi o retorno mental à missão de eternizá-la como o pano de fundo perfeito para um capítulo crucial dessa jornada.

 

Na sinopse que renasceu em minha mente, enquanto caminhava com empolgação:

O Alquimista percorria as ruas de modo curioso, um viajante solitário cujo burburinho interno ecoava mais alto que o suave murmúrio da noite. Seus passos, leves, eram compassados pelo ritmo de seus pensamentos. Seus olhos, treinados para destrinchar os segredos mais obscuros da matéria, agora empreendiam uma alquimia maior: decifrar a alma enigmática daquela cidade. O que era aquela energia que transformava granito, pinheiro, araucária  em poesia concreta?

Alto acima, pairando sereno no véu escuro do céu, o Anjo observava. Não era uma vigilância, mas uma contemplação reverente.

Sob as asas silenciosas do celestial vigia, a cidade se despedia do dia em um espetáculo singular, como o do Natal-Luz, em seu ápice. Uma a uma, como frutos dourados de uma árvore cósmica, as luzes urbanas acendiam-se em um ritual suave, travando sua gentil batalha contra a vastidão da noite. Mas esta não era uma noite hostil. Era uma noite boa, magnífica, estonteante — um manto de veludo negro cravejado de diamantes  estelares, contra o qual as luzes terrenas ganhavam um novo e comovente significado. Valia cada instante de escuridão apenas para testemunhar tal espetáculo.

A luz não apenas iluminava, mas encantava os contornos da cidade. Desenhava as direções das avenidas, traçando linhas douradas e rubras que serpenteavam entre os edifícios como rios de lava criativa. Laços de luz enlaçavam praças, colares de âmbar e cristal adornavam os pinheiros,  os canteiros com flores aveludadas também surgiam como favores da pouca luz, e cada reflexo na superfície molhada das ruas parecia uma estrela que havia caído apenas para participar da festa.

Era uma beleza que não era apenas vista, mas sentida na pele — um calor estético que emanava do chão para encontrar o frio cortante da altitude, uma sinestesia perfeita.

E o Anjo, cujo coração celestial compreendia a linguagem dos sonhos, contemplou aquela visão e pensou:

“Eis uma pérola na montanha. Não cintila no fundo do mar, mas brilha no alto da serra, polida pelo frio e pelo sonho incessante de milhares. Uma joia rara, guardada por todos que um dia, mesmo que por um instante, souberam sonhar.”


Tenho muitos livros, muitas histórias disputando espaço na mente. Umas emergem, outras recuam, aguardando sua vez. Mas naquele momento, envolvido pelo frio e pela beleza de Gramado, foi O Anjo e o Alquimista que veio à tona, não como uma lembrança, mas como uma promessa. Uma promessa de que, de Itapetinga (o lar primordial) e de Cerritos (o estrangeiro), antes sua jornada os traria a este lugar mágico. E aqui, sua história ganharia um novo e INTERESSANTE capítulo.

Caminhava para casa, com a infatigável sensação... eu voltei!

Carlos Costa França

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