Uma Cidade Natal - ITAPETINGA
Voltar à cidade natal foi como abrir um livro antigo, cujas páginas amareladas ainda exalam o perfume de um tempo que, embora inalcançável, permanece vivo em nós, tal como o silêncio à sombra de uma árvore. Árvores que ainda estão lá — agora mais imponentes, mais vitais até. Um dia, eu as abracei. O tempo, esse não.
Desta vez, não caminhei sozinho. Meu filho mais novo estava
ao meu lado, seus olhos curiosos explorando o cenário onde minha infância se
desenrolou. A jornada era tanto dele quanto minha, um encontro entre o passado
e o presente, entre o que foi e o que está por vir.
Nesta caminhada, lembrei-me de um trecho do escritor francês
Victor Hugo, em seu poema A Criança:
"A criança que ao mesmo tempo choramos e abençoamos,
Sobre quem a sombra faz um anjo, e que acariciamos,
A criança que sentimos nascer na alma."
Hugo capturou com perfeição a essência da infância como um
período de pureza e inocência, mas que também carrega a promessa de sonhos e
desafios. De certa forma, sua poesia ecoava meu próprio percurso pela cidade. Outro
poema, Infância, do escritor francês
Jules Supervielle, retrata as memórias e
os sentimentos de forma mágica e lírica.:
"E eu caminho através da minha infância perdida,
Com a lâmpada erguida e o coração suspenso."
"E eu caminho através da minha infância perdida,
Com a lâmpada erguida e o coração suspenso."
Foi uma viagem que transcendeu o físico, atravessando
memórias e emoções que pareciam adormecidas, aguardando apenas o momento de
serem redescobertas.
Minha mãe, com seus 90 anos, foi o ponto central dessa
jornada. Ao vê-la, uma torrente de sentimentos me invadiu. Lá estava ela, tão
frágil no corpo, mas com uma essência que desafiava o tempo — uma presença que,
ao mesmo tempo, trazia serenidade e tempestade. A vida esvaía-se nela com um
aviso mortal e imortal, como se sua existência fosse um poema vivido.
Calei-me e entreguei-me ao momento. No fundo, não fiz nada,
fez-se em mim! Estive numa manhã com ela e um pouco da tarde. Pois a vida fez
suas preces, ruge através do leão dos acontecimentos e fere as estradas do
encontro com soberana necessidade. De repente, agora era noite... um sonho...
Lembrei-me de outro trecho poético do escritor Supervielle,
que parecia sussurrar ali:
"O tempo vem ao nosso encontro
Com suas mãos pálidas
E suas vestes de esquecimento."
Mesmo com o Alzheimer apagando parte de suas memórias, era
impressionante como sua essência resistia. Ela ainda sorria, ainda encontrava
prazer nos pequenos momentos. Minha irmã comentou como a doença havia, de certa
forma, suavizado a dor do falecimento do meu irmão. A perda não desapareceu,
mas foi como se a névoa da doença tivesse coberto a dor, deixando uma mulher
mais temperada, talvez até feliz.
O poeta inglês Robert Browning disse uma vez:
"Envelheça junto comigo!
O melhor ainda está por vir,
O final da vida, para o qual o início foi feito."
A cidade, por sua vez, me recebeu com um misto de
familiaridade e estranheza. Algumas coisas permaneciam intocadas, como a
escolinha onde fiz o pré-primário — um pequeno prédio que agora parecia menor,
mas ainda ecoava as vozes infantis de outrora, embora prestasse a outra função.
A casa onde cresci ainda resistia, embora abrigasse outras histórias. Já a casa
dos meus avós, com novas fachadas e novos habitantes, carregava outro tipo de
melancolia.
Mas Itapetinga, que um dia foi o universo da minha infância,
agora parecia menor, um canto aconchegante na memória, mas ainda uma parte
essencial de quem sou.
Essa viagem, embora externa, revelou-se profundamente
interna. Cada esquina, cada detalhe, era um fragmento de histórias que, juntas,
formavam um mosaico de duas rosas: uma que vivi e outra que permaneceu
impossível a mim, mas não a outros que sempre estiveram naquela cidade.
Fernando Pessoa, sob o heterônimo Ricardo Reis, descreve
essa sensação com uma precisão melancólica:
"O tempo foge, amor;
A vida passa e dura
Só um momento e a alma
É pequena e escura.
Que ao menos, se perdura
Em nós o amor das cousas,
Morramos as duas rosas."
Tudo isso ganha ainda mais significado porque estou no
processo de criar uma quadrilogia onde Itapetinga será o cenário de um dos
livros. O primeiro volume, O Anjo e o Alquimista, já se passa na distante
Europa, no encantador Principado de Liechtenstein.
O segundo livro será ambientado em Gramado, no Rio Grande do
Sul, com sua atmosfera europeia e cultura gauchesca. O terceiro terá como palco
as ruas e memórias de Itapetinga. O último, em Cerritos, nos Estados Unidos,
encerrará esse ciclo literário e existencial.
Essa experiência em Itapetinga não foi apenas sobre
revisitar um lugar; foi sobre reviver sentimentos, redescobrir raízes e lembrar
que, por mais que a vida mude, certas coisas — como o amor de uma mãe, as
risadas de infância e as histórias que carregamos — permanecem perenes.
A cidade encolheu, sim, mas nunca deixou de existir dentro
de mim. Agora, mais do que nunca, sei que Itapetinga não é apenas um lugar; é
um estado da alma, uma fonte inesgotável de inspiração para a vida e para a
escrita.
Carlos Costa França
Comentários
Postar um comentário