REFLEXÕES DE FINAL DE ANO - ESPIRITUALIDADE IN NATURA



REFLEXÕES DE FINAL DE ANO - ESPIRITUALIDADE IN NATURA

 

1 - UMA CRISE CRIATIVA

 

Nas últimas semanas, estava buscando um tema para as minhas Reflexões de Final de Ano. Que sempre faço.  No entanto, nada me vinha à mente como inspiração maior. E para mim, sem inspiração não há poíese, poética. Ação genuína de criar e realizar. De uma entrega mesmo. E de algo que traga algum crescimento, entendimento, valor.

Cheguei a acreditar  que esse ano de 2022 ficaria sem essas reflexões. Mas por incrível que pareça, até mesmo uma bela jarra de cristal, destacada numa mesa de certo evento no trabalho me ajudou com isso. Falarei mais adiante sobre essa jarra. Aguardem!

No entanto, adiantarei o essencial dessa experiência textual, que tem como tema, ou talvez, mais para um  lema,  “espiritualidade in natura”, através de um trecho da poesia Precisão, de Clarice Lispector, “O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição”.

A falta de inspiração também  não foi diferente no caso de  uma pintura a óleo por fazer. E já fazia algum tempo que tinha colocado uma tela sobre o cavalete. Pensei em paisagens, no rosto selvagem e altivo de algumas de minhas personagens femininas, em seres fantásticos, numa marina, em um veleiro à noite se orientando pelas estrelas e em uma galáxia.

Porém, nada me impulsionava para tal tarefa. Que no mínimo, além da dinâmica gratificante é um feito de criatividade.  E neste exato momento,  enquanto escrevo, olhando para tela, nada me vem ainda, sua brancura fantasmagórica quase ilumina o sótão onde me encontro.

E na sua mudez crua e singela, a tela nem me persegue nem me  liberta, pois há na minha disposição o desejo constante e afinado de um fluir estético. Num laço inamovível de elegância, desafio, suor (o esforço sempre existe) e talento artístico para as Belas Artes.

Tudo expresso ali como enigma de um elo entre a realidade interna e externa, que sem o querer, ou por um querer de qualquer natureza vai  espiritualizando a matéria.  Ou seja, mesmo uma tela em branco traz símbolos, signos e sentidos que enriquece a vida, pois estamos em tudo que nos rodeia para o bem e para o mal.

“Tudo em nós está em nosso conceito do mundo; modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós, isto é, é modificar o mundo, pois ele nunca será, para nós, senão o que é para nós”, Fernando Pessoa.

Então, que assim possamos fomentar sempre as boas coisas. Erradicar as trapaças de nossas mentes, as armadilhas de nossas falhas e os embustes de nossas ilusões. E aproveitar as oportunidades, pois quando estamos prontos para iniciar algo novo em nossas vidas, realmente as coisas acontecem. Elas chegam! E nunca se esqueça que você as pediu. 

Sim, pediu sim!

 

2 – UMA MÍSTICA DO TEMPO, SÉCULOS EM MINUTOS

 

Momentâneos lampejos de séculos esvoaçaram no desenlace de  minutos. Minutos gotejantes no relógio do coração, ávido de memória  pelo orvalho do ontem desaparecido. Clamor  de um universo riscado pelo olhar de muitas noites. Um olhar azul de céu, o próprio céu, um céu de outro tempo,  adormecido de oceanos, de outras terras e de outros costumes. Porém, a névoa argêntea e galopante entre os mundos fraturou o esquecimento e a separação, por um único ato... olhar.  

Do mistério


            Vejo e não posso falar com plenitude, pois não tenho uma língua poderosa que dê conta de todas as maravilhas do universo. Apenas uma língua emprestada do pó da terra. Esta, na maioria das vezes, frívola, indomável, volúvel, absurda e temerária. Se os homens gritam, apenas sussurro. Isto tem que ser aceito para que possamos continuar. Não há engano aqui nem no que pronunciarei de imediato: todo o bem, toda a verdade e toda a alegria é a paz de espírito que conquistarmos, o resto é travessia e luta. (Trecho de Caravana da Alma)

 

Compreendi que  as indomáveis vertigens  das aparências, afeita aos anos dos homens  e suas vivências, podem percorrer o nosso sangue com a natureza febril e casta ao mesmo tempo, principalmente quando o que amamos é uma saudade que não tem nome e ultrapassa em muito a uma única existência. O verbo na tentativa  de sustentar o destino parte os grilhões de sua semântica temporal, porém destemido lhe resta orbitar o coração da verdade. 

E se tivermos aquilo a vida toda, como um princípio místico e mais, brotando da tenra infância,  ou como uma chama que brilha na caverna portentosa dos sonhos legítimos, protegida de tudo. Por vezes, até de nós mesmos! É como se o sagrado e o segredo do que nos concebeu alma, espírito e corpo incendiasse a pólvora da vida, ligando todos os acontecimentos. E de tudo e para tudo, ainda que se  desconheça inteiramente porque tal merecimento.

Talvez, a única coisa  possível e transcendente o suficiente para romper de forma completa o véu da existência, do espaço-tempo, de toda cadeia casuística e dos signos sociais, é o amor. Em mim,  não se esgota tal sentimento pelo mistério, que é chama, céu e caminho. Dessa forma, se o mármore inquebrantável do meu afeto se atrevesse contra o tempo não seria tão estranho. Presumo, que assim o trono do mistério seria ocupado.

Enquanto do cerne da existência, onde o tempo se faz de suor e sangue, mesmo que o sujeito esteja no seu canto quieto,  tão quieto que o silêncio o inveja e o impossível lhe tem como um velho e bom amigo. Ainda assim, a vida lhe traria desafios e surpresas. Fomentaria seu crescimento até mesmo com tarefas portentosas, que  em igual valor, poriam  as montanhas a gemerem.

Mas se ele fosse como Galahad (Percival), o décimo terceiro cavaleiro, predestinado a encontrar o caldeirão de Ceridwen ou o Graal, a busca da redenção espiritual. Um sol ainda maior nasceria entre o que tão somente a expressão desse símbolo, pois o trabalho humano ainda necessitaria ser realizado com tudo que é necessário neste mundo dual .

Mesmo a lua em seu silêncio distante sobre o lago, ele já havia sonhado. Portanto, não há surpresas nesse ponto. Apenas a pele da lua cheia que faz seu encontro com o lago, embriagando a noite dos tempos é que ainda não havia vivenciado. Em verdade, nunca lhe foi estranho  que pássaros do amanhã fizessem visita aos jardins da alma.  

O que não impede de a premeditação lhe pregar peças, em meio ao resgate espiritual e humano, quando necessário. Mas o faz sempre com o suficiente e o necessário. E sem se dar conta, o nobre cavaleiro, é no final a chama do amadurecimento que a vida lhe entrega fora do tempo, sem erro e sem pátria.

E se um coração que sonha em seu próprio mistério de se descobrir não saiba ainda se confiar porque silêncios e medos, escolhas e  virtudes, crenças e rudes sentenças do cotidiano, de um jeito ou de outro fazem a vida acontecer, embora numa estrada lateral da vida genuína, muitas vezes, impedindo o maior crescimento. Não há porque sermos insensíveis ou duros, conosco ou com o outro, pois a condição humana é por demais trabalhosa e difícil.  

De toda sorte, o coração costuma pulsar num compasso próprio, cantam os poetas. À revelia, por vezes, de qualquer coisa do universo. Sujeitinho tinhoso, pernóstico e caprichoso, diriam os pessimistas. Não é verdade, ou inteiramente verdade isso. Pois o que ele diz hoje pode se tornar um compromisso de caminhada. E no futuro, passe por ele o sangue do própria substância da felicidade. Estejamos atentos.

 Carl G. Jung afirmava, “O que alguém não quer saber sobre si mesmo, acaba vindo de fora sob a forma de destino.”

E todos sabemos,  as forças da vida, que não são de brincadeira,  vem de modo imperativo muitas vezes,  como o vento e  a chuva das boas estações, em meio ao caos e ao sabor vivente. Entre obrigações várias e dignas. E é-nos exigido por sua vez estarmos preparados... 

Quando nem treino e nem tempo tivemos. “Puxa! Como pode ser tal coisa?” "Ah, isso só pode ser uma piada. Nunca estamos preparados!

Resta-nos, talvez, ao menos uma palavra verdadeira e corajosa para nosso íntimo, estância  que é sempre a mais importante. Entre as mãos tão frias dos mistérios e tão quentes da vida, há sempre o extraordinário, o amor e o destino. E não importa, porque ao encontrarmos o fio invisível da vida, nos encontramos e somos. Isso basta."

Na escola da vida, o tempo sempre é o melhor juiz, remédio e amigo verdadeiro. E isso em qualquer... Sim, sim, sim  em qualquer situação. Lembrem-se. E assim devemos obediência estrita a ele, mas como foras da lei (agora necessito de ajuda no que quis dizer aqui. É uma situação de urgência. Bem, recorrerei a um poeta, já imagino qual). 

É certo que a coragem humana parece exercer sobre o tempo um certo domínio, acalmando-o. Ou seria, mais exatamente, acalmando-o dentro da gente mesmo? Acho que essa última sentença é a resposta correta.

E neste ponto ecumênico das ideias e abstrações, já sei qual o poeta me ajudará com a tarefa nessa relação de obediência ao tempo (E assim devemos obediência estrita a ele, mas como foras da lei). Além disso, espiritualizar a vida é poesia também. E me lembrei dele por justamente está aqui no Rio Grande do Sul. É ele, o imenso poeta gaúcho Mário Quintana, com seu poema, O Tempo. 

O TEMPO

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são seis horas!

Quando se vê, já é sexta-feira!

Quando se vê, já é natal…

Quando se vê, já terminou o ano…

Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.

Quando se vê passaram 50 anos!

Agora é tarde demais para ser reprovado…

Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.

Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…

Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…

E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.

Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.

A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

 

3- ENTRE O NASCER DO SOL E O TEMPORAL

 

Por hora, há um temporal resoluto lá fora com trovoadas e raios que na sua aptidão  titânica acalenta meu espírito inquieto. Além disso, a chuva repicando gentilmente no telhado  me traz recordações antigas e benfazejas, persuadindo meus sentidos para viver o momento e todas sensações desse temporal. Como escreveu Fernando Pessoa, ele novamente, “Sinto-me nascido a cada momento. Para a eterna novidade do Mundo...”

Mas devo continuar a escrita para o bem-estar do texto e sua proposta, afinal sou também da área de saúde. E uma atitude preventiva é sempre bem-vinda. Soube que existe uma nova variante da Covid para textos, que denominei de  Cocó R, R de Rabisco. Só há um único sintoma, texto em branco.  De curso clínico imprevisível. Perigosíssimo. Tratamento desconhecido.  

Mas de fato, a inspiração para escrever veio-me finalmente no finalzinho de novembro. Estou no começo de dezembro. A inspiração ocorreu por dois acontecimentos fortuitos. Um deles foi um evento e seu entorno sobre Psicologia e Espiritualidade no local de trabalho. Inclusive, dia que foi para mim muito atribulado, atucanado (como se diz aqui no Sul). Mas não deixei de ir.

Depois de cumpridas algumas coisas, fui a pé para aproveitar o prazer de andar pelas ruas de Gramado. Prazer que quase perco. Justamente esse fruto amargo que surge quando nos acostumamos com algo. Mas que antes era  bastante encantador. Perdendo-se a graça,  o sentido e a beleza.  E nesse processo de reencetar o encanto do lugar, enquanto me dirigia  para o evento, ia refletindo sobre Freud, Jung, Nietszche, Sartre, entre outros.  

Já o outro acontecimento foi um encontro com o nascer do sol. Isso mesmo! Com o nascer do sol. Explicarei...  Acordei no dia seguinte ao evento,  com certo calor, fazia acredito entre 21 a 24 graus, não sei ao certo (um adendo, isso em Salvador, é um inverno polar. Faço esse parênteses, pois muita gente lerá esse texto por lá).

E era um pouco além das cinco horas da manhã. Atravessei o corredor, ainda sonolento, dirigindo-me à sala, que já apresentava alguma claridade. Senti que ia respirando um ar mais frio do início da manhã, certamente como resultado dos favores da madrugada.

No instante, que adentrei a  sala, sincronicamente, ela estourou em luz dourada. O que me impressionou um pouco. Tudo se tornou dourado ali, as cortinas, as paredes e parte dos móveis. E parecia que parte da luminosidade fazia um vórtice de claridade num dos cantos da sala. Imediatamente percebi que era devido um jogo óptico, nada misterioso dos vidros das janelas, que funcionavam arredia e involuntariamente como espelhos. 

Ao me aproximar da janela, e esta justamente voltada para o leste. O sol nascia esplendoroso e magnífico. Moro no alto. Ele nascia acima do verde das florestas nas partes mais altas da montanha e o brilho resvalava sobre toda a cidade de Gramado como um manto de luz dourada. Não pensava em nada. Estava contemplativo, mas ocorreu-me, “o Sol me viu e eu vi o Sol. Nos vimos!”

Talvez, um dos mais belos nasceres do sol que já tenha visto. Realmente não sei dizer. É certo que em Gramado foi o mais incrível. Depois disso, o dourado extinguiu-se quase abruptamente, transformando-se numa claridade transparente e algo azulada no mais distante que as vistas podiam alcançar. Era uma sensação de plenitude. Uma sensação de paz.

Embora a experiência em si, isso não quer dizer que a vida se resolva como um todo (na hora, até parecia que sim). Pois a vida tem as forças do caos, da desordem e das contradições intrínsecas.  Inclusive, passado algum tempo somente, novos problemas da vida comum e ordinária me chegaram a galope.

Como relação ao nascer do sol, tive certamente uma experiência numinosa (vamos dizer, uma experiência contemplativa), termo da psicologia Junguiana. Mas por que conto toda essa história? Isso tudo me remeteu ao conceito de Imago Dei (Imagem de Deus) de Carl G. Jung,  relacionado a Psicologia e Espiritualidade.

Já por outro viés totalmente diferente, lembrei-me de Diógenes, o Cínico, que foi um filósofo da Grécia Antiga. E tinha a pobreza extrema como  virtude, pregando o desapego e autossuficiência perante o mundo, sendo contra os valores da sociedade corrupta de seu tempo. Dizia-se cidadão do mundo, talvez o primeiro nesse sentido.  

Conta-se que  Alexandre o Grande, ao encontrá-lo, questionou se ele poderia fazer alguma coisa pelo filósofo. Diógenes respondeu que sim. Que saísse de sua frente, pois  Alexandre lhe tapava o sol, algo que ele não poderia lhe dar.   Impressionando,  Alexandre  declara para seus oficiais, que logo depois do encontro com filósofo passaram a zombar do pobre  Diógenes, "Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes."

Moral da história, ou ao menos, a moral que criei: ainda que uma sombra se interponha entre você e o sol, nada poderá tirá-lo de ti, pois quando ele brilha também do lado de dentro não há sombra que o alcance!

 

4- UMA BRISA CONCEITUAL

 

Jung como psicólogo e pensador nos mostrou que a espiritualidade não é monopólio das religiões. Que a espiritualidade é a dimensão do profundo em nós, ou seja, é um aspecto interno da psique. Atuante. E não só isso, que esta dimensão, a da espiritualidade é como um Sol interior, uma Imago Dei, a imagem de Deus. O valor supremo da alma.

 E esta imagem sendo o principal arquétipo (modelo primordial), com maior poder libidinal, de maior energia, dentro de toda a psique. Dessa maneira sendo essencial para o desenvolvimento e amadurecimento psíquico e emocional do ser humano até ele alcançar, o que Jung denominou de processo de Individuação.

 Para Jung não era uma questão de acreditar no divino, mas vivenciar essa experiência. E deixando claro aqui, que esta  imagem arquetípica (modelo primordial) estaria presente em todos as culturas, observadas nas religiões ou espiritualidades. As religiões não são arquétipos, mas manifestações de uma consciência  coletiva e cultural.

Mas ao falar de religião e espiritualidade explica Jung, que a confissão, frequentar um templo por exemplo, é um aspecto meramente coletivo. Crê naquela fé porque todo mundo acredita não funda ou estrutura um aspecto realmente subjetivo ou uma experiência imediata. Mas se o indivíduo vivencia  a ritualística religiosa em seu aspecto sensível e simbólico, e aquilo reverbera no coração, pode haver uma religação com esse aspecto supremo da alma.

O que Jung chamava de atitude religiosa tem a ver com o que denominou de numinoso. Efeito dinâmico não criado pela consciência objetiva, ou seja, é justamente a característica e a possibilidade do inconsciente manifestar-se de maneira autônoma. Até mesmo de maneira compulsiva.

A  energia específica do arquétipo chamava-se Númen assim como a energia específica à disposição da consciência se chama Vontade. Na visão de Jung, o ato religioso estaria na consideração conscienciosa por aquilo de numinoso, ou seja, por aquilo que ultrapassa a consciência, mas nasce ali de dentro do indivíduo. Na totalidade de sua psique.

Mas isso basta em termos de Psicologia ou do pensamento humano? Não evidentemente, pois há diversas abordagens, filosofias e pensamentos.  O grande mérito aqui é que existe uma abordagem psicológica que pensou de modo sério e profundo a espiritualidade como essa maior força dentro do ser humano. Como algo  estrutural e estruturante do desenvolvimento da psique.  

 

5 -UMA SEGUNDA BRISA CONCEITUAL

 

Já Sigmund Freud, criador da psicanálise, que  foi um grande e pensador e observador da cultura,  vai por um caminho totalmente oposta à visão Junguiana. Sua teoria é centrada na sexualidade,  o falocentrismo. E  ele vê o fenômeno religioso como um processo patológico do ser humano, uma neurose infantil.

Em termos gerais, uma neurose coletiva (a neurose obsessiva universal da humanidade), isto é, uma dependência que o ser humano tem para com a figura do pai, da mãe e que ele projeta para o divino. Pois seríamos frutos de um “desamparo existencial”, que as crianças suprem em parte com os pais, mas o adulto buscaria na religião algo para dar conta da realidade, já que o desamparo é uma condição contínua.

 Freud concorda com o respeito pelas religiões, mas ele discorda do uso delas como fundamento do comportamento humano. E  anuncia, mesmo quando as religiões se autodenomina com uma religião de amor, é apenas para aqueles que participam. Para todo o resto a severidade e a dureza.  Ou seja, temos aí os rastros da intolerância religiosa.

Isso tudo não quer dizer que uma abordagem psicológica invalide a outra. São perspectivas diferentes e funcionais. A psicanálise em seu método tenta dar conta da realidade implicando totalmente o sujeito. Sem desculpas para seus problemas e atrasos na vida. Entender e analisar a relação  dos desejos inconscientes e os comportamentos e sentimentos vividos pelas pessoas.

Já para o filósofo Nietzsche que anunciou a “morte de Deus”(dos valores absolutos para o homem moderno)  o homem,  é um ser “jogado” neste mundo para o abismo, para o caos, para o nada, estando completamente desamparado. E ele continua a dizer,“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre o abismo.”

 Depois Nietzsche oferece uma saída, na possibilidade de nobreza do homem, a vontade de potência, vontade de acumular forças e grau de luta. A luta como próprio fenômeno da vida. “O homem é algo que deve ser superado.” Além disso, ele exortava o amor incondicional ao próprio destino. Esse destino  de cada homem, fosse qual fosse, o amor fati.

Esse é um pequeníssimo recorte, minúsculo mesmo, microscópico. Ele é somente  para estabelecer um “layout”  conceitual desse escrito, do “tema lema” dentro do campo da psicologia e do pensamento humano. Contudo, devemos continuar nossa jornada textual. Ainda se seguirá com alguns conceitos necessários. E só. Aliás, talvez mais do que imagino neste momento. Perdoem-me. 

 

6 - JARRA DE CRISTAL – UMA ÁGUA SABORIZADA

 

Estava eu caminhando pelas ruas de Gramado, essa bela cidade. Pois ela é bela mesmo.  Dirigindo-me para o evento no trabalho e pensando em todas essas coisas sobre psicologia, espiritualidade, filosofia. E como já disse, era um dia muito atribulado para mim. Quando o evento estava se encerrando, passei automaticamente a pensar sobre os compromissos e resoluções de problemas ainda para aquele resto de tarde.

E então um membro da equipe começou falar para encerrar aquele evento.  Estava ainda um tanto distraído, perdido em meus pensamentos. E comecei a observar e a sentir, sobretudo, que existem pessoas que quando falam, quando se expressam, o coração também fala. Era o caso ali. E mais, e que aquela pessoa era uma pessoa boa. Uma boa pessoa simplesmente. Não significando perfeição. Isso por vezes é confundido.  Vou chamá-lo de o curandeiro.

Lembrei-me do cantor baiano Raul Seixas, que dizia haver três tipos de questões, assuntos “ As coisas de Deus, as coisas dos homens e as coisas das coisas! (e estas é que tem um peso maior)” Pois bem, o curandeiro “falava das coisas das coisas”, do humano, do simples, do essencial, daquilo que liga tudo e a todos,  do que é demasiadamente humano. Que é afetivo e efetivo. Ponto.

Bem, terminada esta parte do evento haveria a seguir um lanche. E de imediato eu pensei, “vou para casa!”  Mas chegando do lado de fora do auditório me deparo com uma mesa com frutas, algo mais na linha  natural.  “Ah, vou ficar, vou me permitir”. E elaborei mentalmente“de toda sorte, para infelicidade geral, os problemas nem correm nem fogem. E qualquer esperança de uma auto resolução é uma tremenda tolice. Então, está tudo bem! Encontro com eles mais tarde.”

“Bem, eu me permitirei desfrutar desse tempo aqui sem nenhuma expectativa”, sentenciei. E essa disposição é muito importante, porque  é através da entrega que se estabelece o viver. Naquele instante, havia poucas pessoas egressas do auditório. Então, degustei algumas frutas tranquilamente. E observei que havia três garrafas térmicas negras. Negras como o solo mais fértil e belo que se possa existir.

E essas garrafas pareciam se estender como um muro intransponível, mas desejável. Imaginei que uma daquelas garrafas fosse de chá. Nenhuma delas. Todas continham café.  Tomei só um pouquinho. Sem açúcar. Sempre!  De repente, me chamou a atenção uma belíssima jarra de cristal transparente com frutas e ervas, ali compondo o seu interior. Uma joia no lótus, por assim dizer.

A luz que descia  por uma claraboia do edifício, logo atrás, por vezes, a irisava, ainda que de forma tímida. Ainda assim, belíssima. Pois existia  no vaso ornamental uma espécie de trindade, forte presença de luz, cor e transparência. Na minha ignorância acreditei que fosse tão somente um enfeite. Então perguntei para as pessoas que estavam ali.  “O que ser isso?” e apontei para mesma.  

E veio a resposta, “água saborizada”. Falei, "hum... é um chá gelado então”. Como vocês podem observar, a ignorância é insistente.  E comecei tomar aquela água saborizada. O fato é que ela era muito boa.  E não parei mais de beber a tal água. Para mim, ela parecia uma espécie de floral.

 Naquele instante havia um momento de descontração, formou-se uma espécie de roda, e o curandeiro começou a falar sobre experiências paranormais, de uma fé nas coisas maiores mesmo, de situações para além do comezinho da vida. Expressando-se com tranquilidade, alegria e amorosidade.

 No entretempo disso, conversava com a gentil senhora que tinha produzido essa água saborizada para o tal evento. E antes mesmo de qualquer coisa, veio-me a compreensão intuitiva sobre aquela  água saborizada. Ela tinha sido feita com muito carinho, com muito esmero e dedicação.  O que logo foi confirmado por ela mesma.

A tal jarra estava ali agora destacada. E eu refletindo justamente os modos da espiritualidade, da sensibilidade e da beleza. E claro, isso me remeteu mais uma vez a Imago Dei, a imagem divina, num objeto material, mas que repercutia interna e sensivelmente. Ou seja, uma relação especular, de espelho.

Da mesma forma foi com o sol, o nascer do sol no outro dia, que na sua beleza extraordinária, aliada a toda sequência sincrônica tornou o momento vivido de uma singularidade inesquecível. De todo modo, uma vivência é uma vivência, não se esgota com explicações. São apenas linhas referenciais.

 A jarra de cristal possuía um conteúdo material, um design, uma estética. Havia inclusive em sua vida pétrea, uma inteligência que a produziu. Algum artesão a fez, a desenhou.  Mas não era apenas um conteúdo material em si, era também um conteúdo sensível de outra pessoa que fez a água saborizada com muito afeto, dedicação e com a força de uma tradição.

Platão, filósofo da antiga Grécia, entendia que todas as coisas surgem do Uno e, por isso, todas as coisas tendem ao equilíbrio, a  harmonia. Pois todo universo caminha em direção à unidade. Já  no caso do ser humano, que  é um ser em construção, essa caminhada tem que ser consciente e por vontade própria. Um constante aperfeiçoamento.

E para gerar essa unidade dentro e fora dele é necessário encarnar três ideias, virtudes ou arquétipos, a bondade a beleza e a justiça. Ele acreditava que essas virtudes levava ao divino. Ou seja, mesmo a beleza leva ao divino. Ou a sua presença é um destaque para algo maior.

A experiência estética é uma experiência que abre uma conexão com o transcendente. A beleza é mais fácil de se evidenciar no mundo, pois é a mais fácil de se enxergar. Embora muitos se percam aí, justamente, nesse verniz que é a matéria.  A beleza é uma reminiscência do absoluto.  Já a bondade e a justiça são virtudes que não se evidenciam tão facilmente e, infelizmente, muito mais difícil de se encontrar de  um modo geral.

Em Gramado  se fomenta e se incentiva o uso de ervas medicinais, uma farmácia natural, como opção para certos tratamentos. Resgata isso. O que é uma coisa muito boa.  Que vem de toda uma tradição de nossos avós, com méritos e sucessos. Que se não fosse assim se perderia na memória dos mais antigos. Excelente recurso sob todos os pontos de vista.  O  curandeiro falou a respeito com muito fervor e ânimo dessa iniciativa. E dele ganhei três saquinhos dessas ervas medicinais.

Com a gentil senhora e outras pessoas, conversei também sobre as qualidades terapêuticas das ervas em geral, e ela ainda me indicou que tomasse a maçanilha (camomila) misturada com o chimarrão, pois ela soube, de fonte muito fidedigna  e respeitável que levava o chimarrão para  um dos postos. Não pude deixar de lembrar de Luiz Marenco, cantor regional de música e poesia gauchesca. Com a música, Quando O Verso Vem Pras Casa. E não tem nada mais convidativo para tomar um mate de manhã cedo, com poesia pura.

 

A calma do tarumã, ganhou sombra mais copada

Pela várzea espichada com o sol da tarde caindo

Um pañuelo maragato se abriu no horizonte   (um pequeno pano vermelho)

Trazendo um novo reponte, prá um fim de tarde bem lindo   (reponte, pôr-do-sol)

Daí um verso de campo se chegou da campereada  (campereada, povo do campo)

No lombo de uma gateada frente aberta de respeito  (cavalo castanho, branco na fronte)

Desencilhou na ramada, já cansado das lonjuras (Desmontou)

Mas estampando a figura, campeira, bem do seu jeito

Cevou um mate pura folha, jujado de maçanilha (misturado com camomila)

E um ventito da coxilha trouxe coplas entre as asas ( asas, o poncho/ coplas, versos)

Prá querência galponeira, onde o verso é mais caseiro (Querência, o canto amado do gaúcho)

Templado a luz de candeeiro e um quarto gordo nas brasa

A mansidão da campanha traz saudade feito açoite (de manhã cedo)

Com olhos negros de noite que ela mesma querenciou

E o verso que tinha sonhos pra rondar na madrugada

Deixou a cancela encostada e a tropa se desgarrou

E o verso sonhou ser várzea com sombra de tarumã

Ser um galo pras manhãs, ou um gateado prá encilha

Sonhou com os olhos da prenda vestidos de primavera (prenda, mulher amada)

Adormecidos na espera do sol pontear na coxilha

Ficaram arreios suados e o silêncio de esporas

Um cerne com cor de aurora queimando em fogo de chão ( cerne, tronco)

Uma cuia e uma bomba recostada na cambona (cambona, “chaleira” rústica)

E uma saudade redomona pelos cantos do galpão (redomona, gigantesca)

 

Gente, fiz uma certa tradução dos termos gauchescos, gaudérios. Que Marenco me perdoe. E assim o fiz para que se possa usufruir esteticamente melhor da bela poesia, já que o texto será lido por muitos lugares do Brasil.

 

Findo aqui, embora gostaria de ter dito mais sobre a importância do rito nas questões espirituais e religiosas. E mesmo sobre a erva mate, Caá Yarií e sua lenda, bem como das questões a respeito da espiritualidade e a natureza, Gaia, Terra. Mas alargaria demais está experiência textual. No mais, deixo um trecho do meu livro Caravana da Alma, tudo a ver com esta experiência textual.

 

7 - DECLARAÇÕES DE UM ANDARILHO

(trecho retirado do meu livro, CARAVANA DA ALMA)

 

               Fiz com que  cada pedacinho da minha alma procurasse as memórias do amor que tive, bem como, a saudade  pelos companheiros espalhados no pó fino do tempo. E na primeira oportunidade, ao me aproximar do oásis em que nasci, fiz com que se remodelassem no barro dos meus sentimentos os rostos tão queridos.

Como em cada viagem ia me conhecendo mais, passei a valorizar  o homem diante da simplicidade e da brevidade transtornante da vida. Tive uma certeza naqueles dias,  se o vento fez soprar meu nome na imensidão, foi porque me descobri em cada porção de felicidade que se abriu em muitos outros corações.  Se  enriqueci em cada caminho, foi pela generosidade dos dias e pelo adeus sincero às formas inadequadas de vida, cristalizadas nas pedras do templo humano. A ponto de não me surpreender, quando vi que as pegadas da ambição e do apego se desfizeram ao meio-dia da minha vida, como se devessem mais às sombras a sua origem.

                Então, num dia em que  as sementes foram lançadas  no  solo fértil da minha espiritualidade e a colheita seria  tanto uma promessa da terra como uma comunhão pelo trabalho das mãos do homem, observei com singelo contentamento, enquanto deixava-me invadir pela quietude do deserto, uma revoada de pássaros no coração que amei a vida. Surpreso, percebi que as distâncias dentro de mim seriam percorridas finalmente no todo e visíveis até o fim do mundo.

               A alegria voejou do seu mundo magnífico, abençoada pela réstia de luz entre árvores seculares que projetavam sombras formosas em aprazíveis recantos, vibrando asas úmidas  e borrifando gotículas refrescantes, que ao tocar as faces nuas da vida, fez algo acontecer em meu coração de andarilho.

               Mas muito antes disso, no tempo em que me encontrei comigo mesmo, sentado à sombra suave dos anos, já havia decidido por uma verdade que me compreendesse mais, e eu menos a ela; por uma certeza que me dissesse menos, e eu mais a ela; por uma vida que fosse mais  rica na chama viva dos meus sonhos e menos das ilusões que me consumiam lentamente.

Dezembro, 2022

Carlos Costa França

 

 


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