ASSIM CAMINHA UM GATO EM GRAMADO NO RIO GRANDE DO SUL

 

Vejam vocês que coisa, um gato atravessou a rua repentinamente diante do meu carro. Mas não se preocupem, havia uma certa distância, e fui freando o veículo. Até aí nada incomum. E fiquei  um tanto preocupado com o destino do felino, pois vinha um carro do outro lado da rua. Era um gato malhado, entre o branco e o cinza, de expressão simpática e confiante.

 

O felino fez a travessia de modo elegante e algo displicente, exibindo passos leves, sóbrios e cadenciados, vidrado em certo jardim que estava à sua frente, um jardim muito bem cuidado por sinal. Coisas da cidade de Gramado. Lá se dedicou a avaliar algumas flores e, por vezes, cheirá-las. Isso mesmo, cheirá-las!

 

Um gato que gosta de flores, imaginem só! Naquele momento, um bonito crepúsculo de inverno era exibido nos céus de Gramado, enquanto os postes da rua já espargiam uma luz amarelada que suavemente ia se enamorando das sombras presentes, quando não,  perseguindo a orla escura das árvores na calçada.

 

Antes um pouco de o gato aparecer, ou  ter existência em minhas reflexões,  vinha pensando   nas primeiras imagens científicas do telescópio espacial James Webb, divulgadas em meados do mês julho, sobretudo uma delas, a de campo profundo do universo, apresentada oficialmente por Joe Biden, presidente estadunidense. Imagem que foi exibida num palco político e sob os olhares atentos da geração “Woke”.

 

O mundo “woke”, como analisa o filosofo Fenando Schuler. “Stay woke”, a ideia desta geração é o estar em alerta. Termo surgido em Nova York em meio a cultura afro-americana como expressão de linguagem precipuamente, lá pelo final dos anos 60. Mas que ganhou conotação de resistência e força com as lutas antirracistas, seguida pelas causas ambientalistas, identitárias e hoje abarca a cultura do cancelamento, ativistas de toda espécie, sendo estes pactuados voluntaria ou involuntariamente com o Mercado.

 

No caso do Mercado, o de sempre: “são apenas negócios”. Talvez a promiscuidade do Mercado seja tanta que mesmo no inferno, há muito, já se esgotou qualquer titularidade para se definir o alcance de sua “promiscuidade mercadológica”. Mas isso faz parte da lei de mercado.  E sem querer se defender exatamente, o Mercado ainda sorri, como se dissesse, “Somos limitados a isso, negócios. E infinitos nisso, negócios!”

 

Para o bem ou para o mal, o Mercado não inventa as rodas, porém as faz girar, ainda que elas sejam quadradas. De outro lado, a geração “Woke” tem se revelado sem substância intelectual e sem rédeas. O que pode promover muitos danos a pessoas, marcas e instituições, como avalia o filósofo Schuler, que relembra o dito melancólico de Umberto Eco: “os idiotas da aldeia ganharam, com a internet, ares de ‘sábios universais’”.

 

Não importa, como o gato, eu  atravessei a rua, a rua do momento histórico e fiquei emocionado com aquelas fotos espaciais, até porque sou um entusiasta da astronomia e da astronáutica, cosmologia, essas coisas. Tal imagem era um recorte pequeníssimo de um ponto do cosmos, mas era a visão mais distante e nítida do universo que o homem já observara.

 

Dias depois, se fotografou com o mesmo telescópio espacial a  galáxia Glass- z13 a cerca de  13.4 bilhões de anos-luz. Apenas a 300 milhões de anos-luz do Big Bang, o início do Cosmos. O início de tudo.  E não cessam as surpresas desse instrumento astronômico que é o mais avançado em sua categoria. E cada vez mais se aproximando da singularidade do Big Bang.

 

Tempos atrás conversando com meu filho, que é engenheiro aeronáutico e aeroespacial, fiquei impressionado com as cifras do projeto de foguete da equipe dele na graduação de uma universidade na Europa. Em torno de um milhão e duzentos mil euros, isso para um protótipo universitário. Mais tarde, quando ele formatou o anteprojeto de mestrado, que era uma sonda para o planeta Vênus, os números seriam bem maiores, caso viesse a ser construído.

 

Então sempre aparece aquela questão, por que se gasta tanto com a atividade espacial? Não se poderia investir essas cifras nas questões humanitárias e planetárias.  Em verdade, é uma tecnologia altamente necessária e relevante. Um exemplo muito claro sobre isso é, se apenas pensarmos nos satélites para o uso da telefonia e internet. Mas este texto não quer  a rigor herdar a defesa dos programas espaciais, é somente uma pontuação prática.  

 

E é como meu filho diz, o absurdo mesmo são os gastos com armamento, que chegaram no ano de 2021 a mais  de dois trilhões de dólares. E em 2022 promete um recorde ainda maior na corrida armamentista. As armas estão em alta. As flores não parecem muito relevantes no momento. Bem como, os jardins são muito pouco cultivados pelo mundo. Embora aquele gato tenha atravessado a rua por causa delas. E sinceramente, estou pensando em plantar umas rosas no meu jardim.

 

O telescópio James Webb não foi barato, custou 10 bilhões de dólares e levou 30 anos para ser construído, sendo previsto uma vida útil de 20 anos, com a promessa que mudará a percepção e o entendimento do universo. Certamente um brinde ao conhecimento,  a engenhosidade  e as conquistas humanas. E sem dúvida, é algo a serviço do homem com diversas aplicações.

 

Embora tudo isso provavelmente caiba uma série de reflexões individuais, coletivas e dos governos ao redor do mundo. Avançamos tanto nesse sentido, mas ainda somos carentes do conhecimento do universo interno e de um promissor crescimento humano que o salve de si próprio. Isso tanto no sentido individual como de toda humanidade.

 

Com horror assistimos a diversas guerras na atualidade, um barbarismo que não finda nunca. E com o agravante perturbador, por essa humanidade ter o poder do próprio  aniquilamento. Existe uma teoria que diz que o motivo de não termos encontramos vida inteligente na nossa galáxia, é porque toda civilização que chegou nessa etapa humana de desenvolvimento não superou a infância nuclear, se aniquilando.  Terrível perspectiva!

 

Com as recentes tensões entre EUA e a China, o secretário-geral da ONU, António Guterres, advertiu que a humanidade está  “a um erro de cálculo da aniquilação nuclear”.  Coisa que não é vista desde da Guerra Fria. Como foi o caso da Crise dos Mísseis de 1962 em Cuba, de orientação Soviética, em que o mundo se viu  prestes a entrar numa guerra nuclear.

 

A vida poderia ser com mais flores e poesia. Não é. Sabemos. São muitas separatividades que tem que se lidar tanto individual e quanto coletivamente. Amadurecer e enriquecer com elas.  Coisa difícil, a história nos mostra isso. E as guerras deveriam ser só as internas.  Aquelas que precisamos lutar para vencer nossas dificuldades e falhas. Quanto aos outros, ou outros, deixo aqui a poesia do   estadunidense, Walt Whitman, que influenciou os séculos XIX e XX com sua literatura. Assim ele nos diz em sua poesia, A Um Estranho:

 

 “Estranho que passa! você não sabe com quanta saudade eu lhe olho, Você deve ser aquele a quem procuro, ou aquela a quem procuro, (isso me vem, como em um sonho,) Vivi com certeza uma vida alegre com você em algum lugar, Tudo é relembrado neste relance, fluído, afeiçoado, casto, maduro, Você cresceu comigo (...)”

 

O fato é que o gato atravessara a rua para um jardim, não sabendo de nada disso, aliás, mal sabia do trânsito. Não tive também como não me lembrar de Fernando Pessoa, “Gato que Brincas na rua, bom servo das leis fatais, que regem pedras e gentes, que tens instintos gerais, e sentes só o que sentes”.

E nesse misto de gato, flores, poesia e tecnologia ainda me recordei do polêmico poeta e crítico francês, Charles Baudelaire, sobre o humano “Que há de mais absurdo que o progresso, já que o homem, como está provado pelos fatos de todos os dias, é sempre igual e semelhante ao homem, isto é, sempre em estado selvagem.”

 

Mas há solução para este estado selvagem? Mestre Eckhart, filósofo medieval, acusado pela Inquisição por excesso de misticismo, apregoava “O ser humano tem muitas peles em si mesmo, que lhe cobrem as profundezas do coração (...). O homem conhece tantas coisas, mas não conhece a si mesmo. Penetre no seu próprio fundamento e aprenda ali a conhecer-se.”

 

No santuário de Delfos, há a famosa inscrição, "conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses", e isso tem diversas implicações para o sujeito, tanto no sentido de reconhecer-se, saber seu lugar, saber seu potencial e falhas, como mudar e transformar-se.  Mas existe uma outra máxima no santuário de Delfos que é por demais relevante, "Nada em excesso". Que nos diz do equilíbrio das coisas a ser fomentadas, promovidas e desfrutadas. Bem como, das atitudes e ações a serem promovidas.

 

Naquele dia ainda, muitas coisas me vieram, havia relido parte do início da biografia de Carl Gustav Jung, fundador da Psicologia Analítica,  onde ele afirmava que sua  vivência maior fora a interna. As externalidades compunham um caldo de acontecimentos e experiências que dinamizaram sua vida interior. Jung se definiu como sendo a história de um inconsciente que tinha se realizado.

 

No transcorrer perene do cotidiano e das necessidades, por vezes, urgentes,  dificilmente temos um olhar maior, mais amplo e profundo do que nos cerca ou mesmo de uma simplicidade que se traduz em algum ensinamento, quietude e interiorização, ou mesmo, porque não, em uma espécie de poesia existencial que se expressa como lição de vida.

 

Provavelmente não possamos fazer muito no palco maior do mundo, porém podemos  fazer por nosso mundo enquanto qualidade de vida e desfrute da beleza que nos cerca. A vida não tem bis, não tem repetição. Cada momento é único.  E buscar estar imerso nisso se traduz em algo como bem-estar e plenitude. E claro, tal disposição do ser repercute  no entorno, ajuda o mundo.

 

As dificuldades não se extinguem, mas podemos ressignificar elas. As batalhas diárias são duras e devemos conquistá-las, mas sem nos perdermos nelas, como mortos-vivos.  É como  olhar para dentro  e  reconhecer em tudo um valor transcendente. E para uma vida humana, que é extremamente passageira, isso tem relevância e se torna um fator de equilíbrio.

 

O gato foi em direção as flores. Também podemos ir. Ao que gostamos, ao que nos faz bem, a uma vida mais saudável e plena. Irmos em direção a beleza e a virtude.

 

 Vivemos num constante estado de alerta de todas as coisas, vindo a sobrecarga. Tensões sobre nossa vida psíquica e social, que  ainda é piorado por nossas crenças e questões pessoais, não raro, pouco saudáveis. E isso  costuma bloquear tudo que é crescimento pelo caminho.  

 

Por outro lado, a ventania de nossos esforços vasculha por nossas ações, aquelas que só faz sentido para a gente mesmo. Enquanto o que nos é próprio, os sonhos, dormem nos pequenos silêncios de nossa sinceridade em nossos corações. Talvez ali embalado por uma esperança que ainda nascerá em algum momento, pois carece minimamente de um maior esforço e cuidado.

 

Para muitos, resta pouco de si mesmos, que os ancorem em  um sentido de vida. Um sentido da vida, uma expressividade com força mínima de realização. É quase tudo por nascer ainda, pois pouco foi construído, perdidos nos labirintos internos e numa menos valia. A vontade estremece diante do fato que que a vida, e a vida dentro da sociedade e na cultura humanas projetam sombras e seus refugos.

 

Cabe um cuidado do lado de dentro e uma responsabilidade constante conosco mesmo. Ações disciplinadas do lado de fora para que as conquistas sejam merecidas. O maior dano é não agir cada dia, todos os dias! E o maior perigo é não sabermos desfrutar desse tempo que é tão fugidio, que vai e não volta... que nem mesmo  dá meia volta... nem nos percorre, nem sofre, nem nada! E faz com que o adeus seja a palavra mais sem substância e forte.

 

O gato fez seu percurso, roubou a cena para si, sem ser roubo, sem ser cena. Era tão somente ele, um gato que gosta de flores. “Olhai as flores de Gramado, não a mim!”, talvez dissesse, miasse. Embora nunca vá se saber ao certo o que ocorreu ali. Talvez tenha se tornado um apreciador de flores naquele exato momento.

 

De toda sorte, foi apenas ele mesmo. Sejamos! Por isso, para finalizar trarei um trecho do meu livro, O Breve Voo da Libélula, Voo Sublime, que fala justamente disso, ser diante da transitoriedade da vida. E esse trecho narra a relação de uma Rosa com o Senhor Tempo.

 

“Quando chegou ao trono, na Torre do Silêncio, o sol ia se pôr. Ouviu mais uma vez, que ela era filha do sol. Isso a fez serenar um pouco. Mas logo se angustiou por ainda não ter qualquer ideia da linguagem do ser.

 

 Passado algum tempo, veio isso por entre pedras assobiantes do desfiladeiro, “Seja apenas!”.

 

Então ela ficou ali imóvel diante do abismo, sendo apenas o que era, uma rosa. Diga-se a mais bela Rosa de todos tempos, portando os mais altivos espinhos.

 

 No perfume que exalava havia notas aromáticas que só apareceram nela, desde de eras remotas. E só seriam dela por toda eternidade, naquele momento fugaz.

 

O perfume passou a penetrar o abismo de um jeito que toda montanha entrou num certo frenesi e êxtase. Os ventos mudaram os rumos naquele dia só para poderem levar aquele aroma esplendoroso, único e finito.

 

De longe, parecia uma rainha em seu altivo trono. Mas não era sua intenção ou plano conquistar um reino ou coisa que o valesse. Ela somente desejava ser, e ser mais na sua muda elegância e beleza.

 

Então de repente apareceu o Senhor do Tempo rápido e furioso, lento e lamentoso, ontem e hoje, no outro dia, estando no mesmo instante da Rosa, mas ausente da plenitude de sua vivência.”

 

Carlos Costa França

Escritor

 

P.S.: Um dos meus livros que participarei do FiliGRAM, O BREVE VOO DA LIBÉLULA, VOO SUBLIME. 

 

Seus capítulos são:

1-  O PERFUME DOS SONHOS DELICADOS E ABSURDOS

2- NUNCA PERDEMOS OS ENCONTROS DO CORAÇÃO

3 - UMA AULA EM DÓ PARA SONHAR   

4 - AS FRONTEIRAS DOS PÁSSAROS DA ALMA

5 - EMBELEZAR OS ARREDORES

6 – NA VIDA A ESPERANÇA É LIVRE E ATREVIDA

7 - UM DIÁRIO DE CORAÇÕES VASTOS

8 - APENAS ENSAIAMOS A LUZ QUE SOMOS      

9 - É TUDO DESPEDIDA E REENCONTRO

 

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