O CUIDAR, CUIDANDO-SE




O cuidado enseja um compromisso e uma disposição continua para com o outro, que envolve conhecimento, empatia, respeito e responsabilidade. Modulado pelo que cada um o é. E mesmo que, pela dinâmica  do atendimento, deva ser assertivo, o tom deve ser amigável, técnico e ético.  Cuidar é perceber a si e a outra pessoa como ela é e como ela está, sobretudo porque há ali um ser humano em  sua dor e limitação. Quando não,  ainda com o peso do medo e da confusão.

É oportuno enfatizar aqui o processo de autoconhecimento do cuidador na cura, pois ajudar é também saber ajudar, perceber-se no ato e no propósito, e menos na afetação indesejável. E via de regra um autocuidado deve ser estabelecido mais ou menos no mesmo sentido e ritmo à medida que nos impliquemos com sinceridade, com compaixão, mas sem nos contaminarmos com a demanda do outro.  A psicanálise fala em neutralidade, no sentido de não se misturar conteúdo.

Normalmente quem é da área de saúde já tem uma aptidão ou um desejo natural de ajudar o outro. Nem todos. Concordo. Não todos, é verdade. Quem nunca, lá pela época da escolha da área profissional, não pensou ou verbalizou, “ah escolho a área de saúde porque gosto de ajudar os outros” ou algo parecido (e aqui já poderia caber uma questão, “Por que é mesmo gosto de ajudar?”).  E isso não acontece em todas as áreas, podem ter certeza. Outros interesses vicejam nesses terrenos das profissões outras.

De um modo simples e direto pode-se afirmar, que todo aquele que cuida precisa se cuidar ou de cuidados. É quase que uma responsabilidade profissional cuidar  do próprio bem-estar  e da qualidade de vida em função da atividade que é exercida. E isso nos segmentos físico, emocional, psíquico e mesmo espiritual (e nesse caso, não necessariamente religioso) para que se possa recuperar as energias empreendidas nessa atividade.

 Alguns podem alegar neste ponto, que é tudo muito bonito esse autocuidado, porém pertencendo mais ao campo do ideal. E de certa forma o é. Ou como diz a canção de Belchior “Tudo é divino tudo é maravilhoso” e segue, “E não tenho um amigo sequer que ainda acredite nisso não”. O mundo não oportuna cessar todas as nossas necessidades. Ainda assim, é para onde se deve seguir, para um certo ideal, pois se busca um estado de equilíbrio das coisas, não de perfeição.

A grosso modo, é necessário zelar e trabalhar continuamente por tudo que nos traz estabilidade psíquica e emocional num primeiro plano, e, concomitante ou não, promover o equilíbrio de nossas vidas diante das intemperes e necessidades que vem das externalidades. Para isso é preciso de uma coragem madura, aquela que nasce do que é essencial. Por exemplo, nossos desejos são muitos, mas as necessidades de fato,  elas mesmas, são poucas. E isso dá um certo lastro! “Sofremos muito com o pouco que nos falta e gozamos muito pouco o muito que temos” William  Shakespeare.

De toda sorte, para  que este texto não pareça um elogio ao abismo, entre o ideal e o real, e não ganhe feições de um recorte motivacional, talvez seja  preciso adentrar um pouco nos agenciamentos do mundo atual para que tenhamos minimamente um panorama mais amplo do que nos cerca e como somos afetados, e dessa forma promovermos melhores ações.

O mundo, vasto mundo, descortina-se com seus imensos desafios e exigências. Um palco giratório de facetas indistintas e façanhas duvidosas, midiático, globalizado onde temos que ser os melhores, mais competitivos, autossuficientes e velozes com os resultados. Trouxe-nos ainda em sua espetacularização das redes sociais o paradigma do individualismo, cada um vive para si e por si. O outro se encaixa numa espécie de “utilitarismo programado e eficiente”,  se este não servir aos nossos planos e projetos, simplesmente não tem função em nossas vidas.

Sigmund Freud, o criador da psicanálise,  dizia que somos feitos de carne, mas que precisávamos viver como se fôssemos feitos de ferro. Embora sua fala contemple o existencial e o drama humano, a  “velocidade” do mundo do seu tempo era outra bem diferente da nossa. Na velha Viena, onde o pensador vivia, viam-se ainda carruagens e cavalos pelas ruas. Ele viveu na era vitoriana que se caracterizou por uma típica solidez política e de padrões.

Hoje, como afirma Zygmunt Bauman, filósofo e sociólogo, “Houve muitas crises na história da humanidade, muitos períodos de interregno, nos quais as pessoas não sabiam o que fazer, mas elas sempre acharam um caminho. A minha única preocupação é o tempo que levarão para achar o caminho agora. Quantas pessoas se tornarão vítimas até que a solução seja encontrada?”

É certo que a pós-modernidade trouxe com ela a fluidez do líquido, ignorando divisões e barreiras; assumindo formas novas, mas fugidias; ocupando espaços sem definir valores, diluindo certezas, crenças e práticas. É o tempo das relações superficiais e vínculos efêmeros. Em que certos valores se perderam, como a honradez, a hospitalidade, a civilidade e etc.

E isso traz certas rupturas, nos fragiliza de muitos modos. É o tempo da corpolatria e da busca incessante do ter (dinheiro, status, juventude e beleza) e menos do ser. O homem contemporâneo se preocupa com  a  aparência  externa,  relegando a um segundo plano o  cuidado  com  a  sua  essência.  Dessa maneira, abre-se para uma continua insatisfação, então sofre e adoece. Não sendo outro o caso do aumento das doenças psíquicas.

Isso não quer dizer que devemos deixar o ter, a materialidade. Não façam isso, é muito, muito arriscado! Mas sim, que devemos investir mais no ser. Somos seres sencientes, ou seja, temos percepções conscientes do que nos acontece e  nos rodeia, bem como, seres de consciência com o poder de reflexão mais profunda (autoconsciência e autocrítica).

Não podemos, nem devemos deixar isso sem uso. Gera um prejuízo considerável na qualidade de vida. Como dizia Platão, filósofo da antiga Grécia,    “Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz.” Essa luz que podemos alcançar com uma reflexão sincera. A respeito disso, Sócrates ainda vai dizer,  “A vida não examinada não vale a pena ser vivida pelo homem”.

E se tudo isso for dosado com certa criatividade, sensibilidade e sentimento de coletividade se pode estabelecer um aumento da felicidade. Para o psicólogo americano, Martin Seligman,  a felicidade não se resume a alcançar estados subjetivos momentâneos. Embora a condicione para tal, “Felicidade também inclui a ideia de uma vida autêntica (…) através do exercício das próprias forças pessoais, que são caminhos naturais e permanentes para a gratificação.”

A existências dessas forças humanas previnem e atuam contra a doença mental: coragem, foco no futuro, otimismo, competências interpessoais, fé, trabalho ético, esperança, honestidade, perseverança, fluidez e capacidade de compreensão.  Apenas conhecer os danos e as fraquezas do sujeito não serviriam para a prevenção.

No âmbito mais prático, não incentivar  estados de alerta e preocupação de uma forma continua e exagerada. Trocar pensamento. Não consumir as últimas tragédias da  mídia como se fosse um bem ou uma obrigação. Realizar atividades prazerosas,  que pode ser uma atividade relaxante, medicação, jardinagem, artesanato, estudo e etc. Fazer exercícios físicos com regularidade, sendo isso importantíssimo.

Como costumo dizer, somos máquinas orgânicas, e estamos condenados a fazermos exercícios físicos. Existem inúmeras pesquisas mostrando os benefícios psicológicos da atividade física  e que vão muito além da produção de hormônios que garantem o bem-estar e melhora a disposição diária. A atividade física também promove a longevidade, afastam doenças físicas e psicológicas. E não param, na atualidade, pesquisas que ligam atividade física e prevenção de doenças.  

“O destino embaralha as cartas, mas somos nós quem as jogamos” William Shakespeare.

Carlos Costa França

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